Saturday, August 22, 2009

CONTOS DA RIBEIRA 5


A HISTÓRIA DO VELHO INAÇO

Corria entre eles aquela história antiga que o velho Inaço contava. Um de seus avós dizia que seu pai havia jogado, todo mundo no Pé da Serra dizia “rogado”, uma praga nas futuras gerações da família: ele disse que todos iriam sofrer de uma das doenças mais terríveis que jamais existiram, e das mais velhas, pois ela certamente já existia no tempo das cavernas. É verdade que de câncer nunca havia morrido ninguém na família dos Raposo e nem de tuberculose, nem de doença do coração, nem de gota. Mas eles sabiam que a praga se referia à doença que muitos de seus tios e primos tinham tido e todos haveriam de ter mais cedo ou mais tarde. (...)



Não era nem preciso dizer o nome, todos a conheciam de dentro de casa, desde muitos anos, quase quatro centenas deles. O menino a pegou na Capital, só podia ser, pois começou a aparecer quando ele estava no Colégio Militar. Não teve jeito, os parentes o mandaram pro Rio de Janeiro, diziam que lá ele iria se tratar e ficar bom. O bichinho acreditou e foi levado, pelo outro irmão, o maiorzinho, que já trabalhava e teve de tirar férias para levá-lo. Assim que chegou, ele foi para a Casa de Saúde, nas Laranjeiras, onde médicos famosos – nesse tempo a família ainda podia pagar por eles – não tiveram conversa, viraram e reviraram o menino pelo avesso e depois lhe deram choques elétricos e de cardiazol. No começo o irmão e parentes – que queriam acompanhar as sessões - viam o pobrezinho quase se quebrar de dor e de se esgoelar, dando gritos terríveis. Passados alguns meses ele melhorou, mas só queria saber de ler, ler e ler. E também de escrever e o que ele escrevia parece que era uma espécie de deglutição do que ele havia lido. A princípio ninguém sabia o que era, mas quando o mais velho, que era muito instruído, até demais, chegou do Rio Grande viu que ele estava escrevendo em grego clássico! Minha nossa, se fosse pelo menos grego moderno, do Pireu, eles poderiam dizer que o menino havia aprendido com o Grego Selatakis, lá na Timonha. O fato é que ele não podia mais ficar no Rio de Janeiro, o velho tinha quebrado, e ele teve de ser embarcado a força em um desses navios do Lóide e quando chegou foi logo internado no Alagadiço. O outro irmão que havia ficado foi quem o levou e todo mundo mal podia imaginar que este daí a pouco, seguiria a mesma trilha do menino. Mas antes havia o outro, aquele que havia levado o menino para o Rio. Como ele tivesse ficado lá, levando uma vida airosa, mesmo sem dinheiro, parece castigo, logo se apaixonou por uma polaca da Rua Conde Lage e queria viver com ela. Ele achava que a jovem poderia se beneficiar de alguma experiência que ele tinha de como representar. Logo pediu demissão do emprego na Casa Inglesa no Forte e matriculou a polaca em aulas de teatro e encheu-a de livros. Como ele vivia não se tinha a menor idéia, talvez o cunhado, um “bon vivant” com uma boa sinecura no Ministério da Fazenda, o tenha sustentado por algum tempo. Ele nunca desconfiou que Aniela, era este o nome da polaca, lhe traísse com um de seus novos amigos cariocas. O final desse relacionamento deu-se quando ele pegou uma blenorragia e daí foi fácil para a doença enreda-lo. Ele também teve de ir para a tal Casa de Saúde, triste nome, pois de saúde não tinha nada, era um verdadeiro inferno na terra. Como é que uma cidade tão bela como o Rio de Janeiro podia ter uma coisa como essa tal de casa de saúde? Ninguém tinha respostas para isso, nem mesmo seu irmão sabido. Agora parece que os Raposo gostavam de lá, dessa casa... Só pode. Esse aí ficou por Laranjeiras, esquecido, por uns bons vinte anos até que chegou ao óbito, como dizem os repórteres das colunas policiais. “Causa mortis”? Falência geral dos órgãos causada por fome, como o Pai. O irmão mais velho, o sabido, continuava colecionando suas borboletas e eles pensavam que ele não se preocupava ou incomodava com nada, mas qual o que, ele vivia tomando o antidepressivo universal e foi assim até morrer, agora não numa casa de saúde, mas numa clínica de repouso. Este é um nome bonito para alguma coisa bem parecida com a Casa de Saúde ou com o Sanatório. No Forte o irmão do meio com sua família criada, mas metido com negócios que nunca davam certo – vender fibra de paco-paco para a Inglaterra, imagine! Foi de prejuízo em prejuízo até que parou num quartinho escuro do Asilo de Alienados, em Porangabussu cujo diretor, o Dr. Brindeiro, fora amigo de seu pai, pois este já estivera, digamos, hospedado lá, por alguns meses, no tempo em que se usava mesmo eram as camisas de força. Esse irmão do meio seria mesmo do meio, pois eles não eram quatro? Bem, ele também teve seus dias de eletro-choque e de insulina e melhorou um pouco, não tanto que as pessoas de casa acreditassem em cura. Não era mesmo uma cura e ele sabia muito bem disso. Ele se aproveitava dessa situação de dúvida e fazia experiências. Elas consistiam em observar o comportamento das pessoas diante dele. Muitas vezes ficava sentadinho em sua cadeira de balançar, pintada de branco, na varanda de casa, com uma toalhinha de lã sobre os joelhos para não pegar a friagem da tardinha, a olhar fixamente para o muro da casa do Seu Gênio, era assim que se chamava o funcionário da firma Booth & Line na cidade, morando em frente. Na parede havia um grafite de uma enorme complexidade que ele queria adivinhar o significado. Aliás, ele fingia querer adivinhar. Ninguém sabia o que significavam as garatujas, nem quem as tinha feito, de modo que fica difícil dizer alguma coisa sobre esse grafite. O que ele fazia era prestar atenção nas pessoas que entravam e saiam de casa e, ao passar por ele sentado em sua cadeira, diziam alguma coisa, como por exemplo: Ô velho chato, não sai dessa cadeira! Ou então: Vai trabalhar home! Ele ouvia isso tudo, mas não guardava rancor, não. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde as pessoas iriam descobrir que ele prestava atenção a tudo que se passava ao seu redor e, quando e se ficasse bom, ele cobraria delas uma explicação. Isto já havia acontecido das outras vezes que a doença o tinha alcançado. Ele nunca tinha recebido explicação de ninguém. O filho desse outro, sobrinho daqueles do Rio e do Rio Grande, ainda quase criança foi visitado pelo diabo da doença. Chamava-se Jorge e era metido a sebo, isto é, os outros achavam assim, mas não, ele era mesmo era picado da tal doença. Da primeira vez que ela chegou de portas adentro, sem pedir licença, o jogou de cama por alguns meses. Imaginem vocês, todos na casa já tinham um como que roteiro de como a doença agia, mas perderam um precioso tempo para levá-lo a um bom médico. Agora havia desses, no Forte, ou assim muita gente dizia. Eram doutores formados na América, na França, no Rio de Janeiro e por aí afora. Novos métodos de tratamento, novos aparelhos, novos testes e o que mais não se sabe, pois esses médicos têm os seus mistérios que não contam pra ninguém. Havia um desses doutores do saber médico que, logo ao atender Jorge em seu consultório, no centro, ordenava que o rapaz despisse a camisa e deitasse ao chão. É, deitasse sobre o assoalho, imundo! Ele ficava lá estiradão no chão e o sábio provavelmente, não certamente, pois ele estava deitado de bruços, ficava a olhar para suas costas sem dizer palavra. Os resultados, benéficos ou não, desse mergulho na poeira do chão do consultório, nunca foram comunicados a ele ou à sua família. Depois de alguns meses ele desistiu dessa terapia terrosa e passou a conversar com um outro doutor. Conversar não é um termo adequado para o relacionamento quase diário de Jorge com esse luminar caboclo. No início da terapia os dois ficavam frente a frente por todo o tempo disponível, - não chegava à uma hora -, ao fim do qual o doutor indicava, por sinais quase imperceptíveis, que a sessão havia chegado ao fim. Após uma dúzia dessas reuniões Jorge resolveu quebrar o gelo e falar, pois de outro modo ele quebraria financeiramente, sem sombra de dúvida, antes de qualquer resultado, positivo ou não. A melhor parte dessa história foi o encontro entre Jorge e esse luminar em uma festinha de aniversário. Ao dirigir-se a ele, o parente do velho Inaço, ouviu: - Eu não me relaciono com ex-pacientes! E virou as costas para Jorge que deu graças aos deuses por tê-lo tirado de seu caminho, muito antes de descer ao mundo silencioso, como finalmente aconteceu. Quando o levaram de volta ao Alagadiço ele só ficou uns poucos meses, pois se acreditava completamente curado, apesar da apreciação sigilosa que o tal luminar havia feito de seu estado para sua mulher; segundo esse laudo não havia cura para o mal de Jorge. O moço, pois ainda era um moço, se sentiu com coragem e forças e resolveu fugir. Certa madrugada ele pulou o muro da Casa de Repouso, era assim que chamavam agora, e ganhou o mundo. Não ganhou o mundo exatamente, mas fugiu de táxi para as brenhas da Serra onde se amasiou com uma menina que era ver uma índia, a Indiazinha, como ele a chamava. Foi nessa época que Jorge achou que tinha evitado à descida ao Hades. Ele que esperasse...

JXF set2008


A figura mostra “As famílias dos bárbaros”, xilogravura de “Cosmographie Universelle” de Munster (Basiléia, 1552).

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