Saturday, August 15, 2009

CONTOS DA RIBEIRA 4


OS GENTILEZA

O velho Coronel acordou ainda com escuro e preparou-se para a caminhada que fazia todos os dias. Hoje ele iria usar os tênis que ganhara de um dos filhos no dia de seu aniversário e uma camiseta com o logotipo do Banco do Brasil dada pelo gerente na cidade. Quase tudo o que ele usava atualmente havia sido dado por alguém, pois ele achava que não mais podia comprar o que chamava de supérfluo. O dinheirinho que tinha acumulado e que ninguém sabia quanto era ele o guardava para levar no caixão, assim se dizia na cidade. (...)

Até sua comida era, atualmente, racionada. Ele gastava o mínimo com tudo mesmo. Comeu uma banana já bem passada, dessas com a casca preta, pois só tomava seus comprimidos para pressão depois de por alguma coisa no estômago vazio, do contrário sofreria graves conseqüências. Ele saiu de casa, de chapéu e bengala e tomou o caminho do Alto dos Pescadores. A bengala era usada principalmente para espantar os cachorros que adoravam latir para sua triste e magra figura. Parou em frente à bodega do Cansanção para um dedo de prosa, o que fazia sempre que ia pros lados de lá. O amigo estava quase cego e se recusava a ir até o Forte fazer uma operação, já arranjada pelo Coronel Sebastiano, com o Dr. Moura Brasil, para tirar uma catarata e ele foi até a bodega para animá-lo, prometendo pagar sua passagem pela Macaboqueira; ele não pagaria o bilhete, pois seu primo, dono da empresa, lhe daria uma. O Cansanção era teimoso, mas no fim ele cederia, o Coronel Gregório Manoel Gentileza tinha certeza.

Ele voltou e encontrou seu filho que chegara da Corte pelo “Amarração” e viera a cavalo de Camocim, pois o negro João tinha levado seu cavalo alazão de que o filho gostava muito. Quando chegou ao Casarão, situado na Praça da Matriz bem em frente da Avenida, Arcádio Acrísio estava esperando pelo pai. Ele era o filho mais velho e também o mais famoso dos seis que o Coronel tivera com Dona Santinha. Ela era aparentada com o Coronel José Romão Melão, o “Melão da Várzea” e os dois tinham casado logo que Gregório Manoel havia chegado do Quixadá e se estabelecido na vila, pelos idos de 1825. Ele logo foi nomeado Vice-delegado de Polícia devido às suas ligações com o Coronel Sebastiano, o mandachuva da vila da Várzea, naquela época e ainda por muito tempo.

Pai e filho sentaram-se nas profundas, mas confortáveis cadeiras de madeira, do Dr. Guilherme na varanda que dava para a Praça enquanto esperavam o almoço que estava sendo preparado pela Maria, cozinheira antiga da família. Eles tentaram por os assuntos em dia, mas era muita coisa, os dois reconheciam. Nesses momentos o filho gostava de ficar observando o velho rememorando algumas das histórias que cercam sua figura; a mais conhecida era aquela de seu envolvimento com um fantasma que aparecia quase todas as noites, quando o velho era jovem, correndo pelas ruas cheias de areia da pequena vila e se alojava em uma casinhola que pertencia a um seu parente. Muitos anos depois alguém descobriu a identidade do fantasminha, mas isso não perturbou o velho nem sua amiga das noites de lua, pois eles continuaram a se encontrar em seu ninho.

O jovem advogado estava trabalhando no escritório do Dr. Ramiro Vasconcelos, desde 35. Este, já afamado na Corte, era filho do Dr. Cláudio César Vasconcelos, famoso na cidade por ter tido a iniciativa, entre outras de criar o Gabinete de Leitura. Os dois tinham ganhado uma causa muito importante que lhes daria bons lucros, quando o Coronel Israel lhes pagasse, o que parecia difícil. Arcádio Adolpho conta que no mesmo “Amarração” viajava com ele e ia para o Forte, onde iria assumir o governo, o Dr. Caio Prado, jovem paulista que havia sido indicado para a presidência da Província pelo Imperador; imagine-se uma viagem marítima de quatro dias e só se fazer amizade com um paulista, mas eles se deram bem e Arcádio Adolpho prometeu visitá-lo em Palácio quando voltasse. Arcádio gostava de mascar e de fumar um cachimbo de barro que tinha um cheiro que mais parecia uma inhaca e que pouca gente conseguia suportar, inclusive seu pai. Sua mãe veio resgatar pai e filho, pois o caçula, Teophilo Ignácio, já havia chegado do armazém e trazia notícias do comércio.

Teophilo Ignácio, o único dos filhos do casal que ficou na vila, seguiu a profissão do pai, comerciante e político e dono de muitos escravos. Ele tinha até herdado, como era costume naqueles tempos, o lugar do pai na Administração, pois em 75 ele foi nomeado Vice-delegado de Polícia. Os negócios de pai e filho estavam em dificuldades devido à grande seca de 77-79 que ainda fazia sentir seus efeitos, mesmo depois de cinco anos. Os preços do algodão, da cera e dos couros estavam muito baixos, mas eles lutavam para manterem-se de pé e de vez em quando vendiam um escravinho para pagar algumas dívidas mais urgentes.

No dia seguinte os outros filhos chegaram pelo horário da tarde, vindos do Ceará. José Fenelon, que clinicava em Camocim, esteve reunido com o Dr. Manuel Moreira da Silva discutindo alguns casos sérios de febres paludosas que ele tinha tratado na vila. Saiu do consultório do grande médico com a sugestão de usar pequenas doses de valerianato de bismuto no tratamento de seus pacientes com essas febres. Ele estudara na Faculdade de Medicina da Bahia no fim do século tendo-se formado em 1908 e assumido uma clínica em Camocim durante o governo do Comendador Accioly. Ele parece ter sido muito competente e havia defendido uma tese muito elogiada até pelo Conselheiro Ruy Barbosa que nessa época fazia parte da congregação da Faculdade.

Os que moravam fora já haviam chegado há dias e só estavam resolvendo alguns negócios na Fortaleza para virem todos juntos para a cidade. Annibal Ladislau, que morava em Recife, tinha também se formado em Direito e logo casado com uma filha do Barão de Bitupitá, homem muito rico e que lhe tinha conseguido um cargo vitalício no Senado onde não precisava aparecer. Ajudou muito nessa empreitada o Senador Serpa, muito amigo de seu pai e um cearense de boa cepa e muito influente, como todos sabem, desde então. Possidonio Lindolpho havia ido para o Forte mesmo às vésperas da libertação dos escravos, e antes que seu pai tivesse de libertar os seus seguindo o Conselho dos Coronéis Ignácio e Antonio, seus amigos. O velho arrependeu-se, pois desde então não mais encontrou ninguém que lhe fizesse uma boa tapioca, além de ter deixado escapar o dinheiro que poderia obter da Comissão de Emancipação. Possidonio Lindolpho tinha arranjado uma colocação na Alfândega onde dava um expediente camarada de três dias na semana. Já Vicente Tiburcio tinha se dedicado aos estudos de Farmácia e tinha sido aluno do Professor Dias da Rocha quando adquiriu o hábito de colecionar plantas e borboletas e estudar seus princípios ativos. Por volta de 1936, quando se sabia que a Segunda Guerra iria estourar ele apresentou um projeto ao Exercito Brasileiro para a fabricação de um medicamento anti-sifilítico a base de ipecacuanha-legítima, uma planta cujas raízes têm propriedades eméticas e muito fáceis de encontrar nas praias da Província. Seus pais e irmãos gostavam de lembrar das histórias do tempo em que Vicente Tiburcio, Voluntário da Pátria, voltou da Guerra do Paraguai onde havia sido ferido na batalha do Passo do Rosário, ou melhor, de Ituzaingó como os vencedores argentinos a chamam. Ele voltou caxingando de uma perna e foi imitado por todos os rapazes da cidade, até por aqueles que eram simpatizantes dos tenentes e não deveriam se importar com tais patriotadas imperiais. Certamente devido a essa deficiência ele pode, desde que chegou da guerra, aumentar sua coleção de borboletas, pois caçava, mesmo sem a redezinha de filó apropriada, a qualquer hora do dia ou da noite, e as levava para casa uma a uma, e onde, ao abrigo de seu quarto e de sua cama punha os exemplares na devida ordem entomológica: novas, velhas, magras, gordas, louras, morenas, altas, baixas, etc. Englobando essas subespécies as borboletinhas se agrupavam em dezenas de gêneros, pois se sabe que elas formam um número assustador de espécies, e sua classificação é complexa e dá muito trabalho, mas Vicente Tiburcio era muito dedicado às suas manias de colecionador.

Eles tiveram um grande almoço preparado por Maria e mais um batalhão de ajudantes sob o comando de Dona Santinha. A mesa tinha de tudo, como sempre fora o costume no Casarão: o prato de resistência era um guisado de um bodinho-mamando trazido da fazenda do Coronel, na Lagoa Vermelha; havia ostras da Maré preparadas no azeite Gallo, arroz de carreteiro feito com carne de sol do Picui, feijão preto mandado vir da Bahia, e que mais parecia uma feijoada de tão temperado que era e mais uma paçoca, esta feita especialmente para o Doutor José Fenelon que todos em casa sabiam apreciar bastante, desde os tempos de menino. É de se notar a total ausência de legumes, as verduras como todos em casa chamavam, pois ninguém, nem as mulheres as apreciavam. A refeição, comandada por Dona Santinha, seguiu até em torno de duas horas da tarde e foi acompanhada de doces os mais diversos feitos em casa mesmo: de mamão com coco, de caju em calda, de bacuri – este veio do Piauí mandado por uma sobrinha – e terminou com um cafezinho simples. Após o almoço os homens reuniram-se na varanda, na parte que dava para a grande baixada e para a estrada de ferro que passava lá em baixo, depois do prédio do Feijão onde as bebedeiras diurnas aos sábados e domingos se confundiam com as noturnas para o desprazer do velho. O que ele podia fazer, pois já falara com o Raimundo Aroeira e este o levou na troça, como sempre fazia com todo o mundo.

A visita dos filhos foi aproveitada para uma discussão sobre o futuro da Avenida, pois havia uma iniciativa, por parte de um empreendedor local de fazer grandes modificações nela. Falava-se também que os planos desse homem de poderes infinitos incluíam até a Igreja Matriz. E o velho Coronel não estava gostando nada disso. Ele lembra que a Avenida, assim chamavam o passeio em frente à Matriz, fora construída pelo Intendente, por determinação da Câmara Municipal, isso em 1897 e que, para todos os gostos era uma beleza, com seu coreto de concreto que, aos domingos, recebia uma das duas bandas da cidade, depois da novena, para uma animada retreta. Teophilo Ignácio, fumando um cigarro “Peito de Vaca”, daqueles bem grossos e pretos, começou a relatar o que havia apurado nas conversas ouvidas na Praça do Mercado. Ele disse ter escutado um boato que parecia firme sobre o interesse do tal incorporador em construir um conjunto habitacional moderno, exatamente onde estava construído o passeio; parece que no lugar da Matriz, um monumento do século XVII, recentemente remodelado e com um revestimento externo de casca de tartaruga marinha, seria construído um campo de golfe. Dizia-se, também, que a aceitação era grande, principalmente pelos proprietários de residências do entorno da Avenida que vislumbraram lucros fáceis pela venda de seus casarões dos séculos XIX. Quando Teophilo Ignácio terminou, ou melhor, mesmo antes disso o Coronel saltou lá com sua agressividade inata e disse:

- Aqui em casa não tem esse interesse não! Eu não saio, nem vendo meu Casarão; ele está neste lugar há mais de cem anos, todos vocês nasceram aqui, além disso, eu acho uma tremenda sacanagem com a cidade que adotei como minha já em 1825.

Após trocar olhares significativos com os irmãos, Arcádio Acrísio diz:

- Papai, calma, cuidado com sua pressão...

- Pressão uma ova! Se eu encontro esse camarada mando o Zé Bento dar-lhe uma surra que vai deixá-lo quase morto.

Arcádio Acrísio quase o interrompe, mas deixou a explosão de ira do pai passar e emendou:

- Papai, primeiro o Zé Bento não mora mais no Casarão, você lembra que quando ele foi emancipado foi embora para o Quixadá e o camarada em quem você quer mandar dar uma surra, ou coisa pior é simplesmente um laranja do Dr. Zequinha. Certamente ele vai lhe prejudicar e aos seus negócios aqui. Vamos pensar melhor.

O velho ficou amuado, mas se acalmou, pois respeitava muito o filho mais velho a quem pedia conselhos, mesmo morando ele no Rio de Janeiro.

Annibal Ladislau tomou a palavra e, como bom advogado, ele também, analisou diversos pontos legais, o mais importante desses era o desaparecimento de documentos que diziam ter sido a Avenida construída com dinheiro da Câmara Municipal quando da Revolução que depôs o Comendador Accioly ou alguém havia mesmo roubado e, talvez destruído.

A Prefeitura agora poderia afirmar que a Avenida não pertencia ao povo, mas sim a ela própria e, como tal o Prefeito poderia dispor a seu bel-prazer. Todos se entreolharam, verdadeiramente atônitos, com essa análise do irmão. A discussão entrou por noite adentro e foi até à madrugada, animada por uma brisa agradável e diversas rodadas de uma serrana do estoque do Coronel. Não havendo consenso sobre o que resolver ou mesmo fazer todos foram deitar, combinando para o dia seguinte uma nova conversa, dessa vez com a presença do velho amigo de seu pai o Tenente Juracyr Magalhães, o grande revolucionário de 1930 e muito amigo de Possidônio Lindolpho e que já estava metido no ramo de construção civil no Rio de Janeiro. Lembraram que o dia seguinte já o era dia de Natal, e que, já na segunda-feira, os irmãos começariam suas viagens de volta, sendo assim a conversa deveria ser pela manhã, talvez até durante o almoço para o qual Possidônio Lindolhpho convidaria o Tenente Juracyr Magalhães.

Arcádio Adolpho disse, então que esperassem por ele, pois iria tomar um banho no rio, há anos que ele nem chegava perto da barragem. Seu pai disse-lhe que tivesse cuidado, pois com as últimas chuvas o rio estava muito cheio, o que não acontecia desde 1964 quando, no dia primeiro de abril, morreram afogados uns três moleques da cidade. O filho tomou nota, mas não desistiu de ir ao rio e tomar o seu banho logo pela manhã. Eles ainda ficaram conversando na varanda depois que o velho Coronel, já cansado, foi deitar. Como é natural conversaram sobre o que tinham conversado quando o velho estava presente, mas achavam todos que, se o velho vendesse a casa poderia sair daquele inferno em que havia se transformado a Várzea nos últimos quarenta anos. Eles concordaram quanto a isso e até com a idéia de que o velho poderia comprar um apartamento de cobertura na Beira-Mar, em Fortaleza. Lá ele poderia terminar seus longos dias com Dona Santinha e onde todos poderiam ir visitá-lo com maior freqüência – as viagens para a Várzea continuavam ainda demorando muito tempo, pois as estradas tinham buracos do tempo do Império. O único que não concordou com a sugestão foi Teophilo Ignácio que antevia a ida da Maria com seus pais abandonando-o na Várzea e por diversos motivos inclusive pelas inigualáveis tapiocas que ela fazia. Enfim, todos foram dormir, depois de um café simples, e esperar a reunião do dia seguinte.

Bem cedo, Arcádio Adolpho saiu para o rio levando sabonete e uma toalha. Ao chegar a Barragem viu o que todos já tinham dito: o rio estava a toda largura, cheio e rugindo, as águas correndo sobre a parede, ninguém imaginaria que ali havia uma barragem, somente quem já a havia visto no verão, pois o nível da água era o mesmo do lado de cima e do lado de baixo. Metia medo. Mas ele não pensou senão em mergulhar nas águas do rio de sua infância e lembrar dos momentos agradáveis que passara ali sobre os lajedos e pulando e nadando nas águas calmas. Tirou toda a roupa ficando nu - desde muito tempo esse costume havia mudado, mas ele era das antigas e queria fruir de tudo que lhe desse satisfação. Entrou com cuidado pela beira das águas barrentas, mas viu que era uma temeridade ficar ali à mercê da corrente violenta. Subiu o lajedo de volta à margem e pegou a toalha branca e felpuda para se enxugar; após enxugar o corpo com a toalha aberta ele a torceu e, pondo-a na virilha começou a esfregar, puxando-a pelas pontas em um movimento ritmado de vai e vem como sempre havia feito. Subitamente perde o equilíbrio e escorregando na pedra ensaboada caiu no rio batendo com a cabeça em uma parte saliente da pedra. Seu corpo foi encontrado na Volta da Areia no fim da tarde.

O velho Coronel Gregório Manoel Gentileza ficou extremamente chocado, triste e contrariado com a morte de seu primogênito. Não esperou muito, mesmo antes do enterro que se daria no Cemitério de São João Batista, no alto, para decidir a venda de seu Casarão para o tal empreendedor que estava comprando todos os casarões antigos da cidade, para modernizá-la, dizia ele. O Coronel logo chamou o Tenente Juracyr Magalhães e pediu-lhe que se encarregasse da venda já que ele não queria nem que nenhum dos seus se envolvesse com o tal empreendedor, pois segundo sua visão, o tal havia matado seu filho Arcádio Adolpho
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(A gravura representa o Bispo de Tournai recebendo o imposto de cerveja dado pelo Rei Chilperico - Janelas da Catedral de Tournai, séc xv)

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