Saturday, August 29, 2009

CONTOS DA RIBEIRA 6


ÁGUA DE LURDES


Margarida havia chegado à noitinha de Fortaleza, ela vinha de sua terceira viagem à Europa fazendo parte do grupo do Padre Misael, da Paróquia de São Bento. Esse amigo professor dos tempos do colégio gostava de organizar grupos de viagem e ela tinha se associado a um deles. Era uma turma boa com muitas ex-colegas e rapazes amigos da Capital. Ela sempre conseguia alguns dias de folga na Coletoria com o Seu Quintino, amigo de seus pais e também dela. Fazia poucos anos que seu pai conseguira essa colocação, a única que seu amigo e compadre Senador Otávio tinha oferecido. Este velhote mulherengo, só queria saber das meninas do Cariri, pois as da Zona Norte ele não precisava conquistar para que seus pais continuassem a votar nele. (...)

O que se há de fazer! De qualquer modo o ordenado dava para suas despesas e suas poucas viagens e ainda ajudava um pouco em casa. No dia seguinte à sua chegada, ao passar pelo quarto dos meninos, vindo do seu, - o Chiquinho já havia levantado - ela vê a Rosilda fazendo uma trouxa do lençol e do pijama do menino. As duas se olham e balançam a cabeça. Ela vai para a mesa da varanda onde já estão todos reunidos, - os que estão na Granja -, para o café da manhã. Após o café ela abre as malas e passa a distribuir as lembrancinhas que trouxera da viagem. Há uma animação geral, pois sabem que a Margarida não esquece ninguém, ao contrário de seus irmãos quando vêem da capital ou mesmo de uma viagem mais longa, nunca trazem presentes para ninguém. São uns pães-duros! Com a mala no chão ela vai tirando as peças de roupas sujas de mistura com as limpas e passando para a Rosilda que tenta separa-las, mas desiste e reúne tudo, finalmente, numa trouxa para lavar. Há seu tempo todos recebem sua lembrancinha: a Mãe ganhou um Escapulário do Carmo, de Roma, o Pai uma piteira de casco de tartaruga, comprada na Estação Termini, a Letícia, a irmã mais nova, ganhou um “gigolete”, na moda por aí afora, o Chiquinho ganhou uma caneta esferográfica das novas. Os outros irmãos estavam em Fortaleza e, por isso, não iriam receber presentes. Margarida trouxe muitas medalhinhas compradas nos diversos santuários em que estivera: São Pedro em Roma, Lourdes e a Igreja da Madeleine em Paris. A Rosilda ganhou uma dourada, assim como a Maria das Graças, a Raimundinha, a Rosa e a Diva. Ela trouxe outros presentes, como pequenos frascos de perfume comprados às dúzias em Paris, na Galeria Lafayette e que faziam um enorme sucesso, esses ela daria para colegas do trabalho. Para ela mesma um montão de blusas e sapatos e broches – não se sabe mesmo onde ela arranjava tanto dinheiro para isso tudo, é o que parecia pensar a Rosilda, sempre observando tudo. Ela tirou da mala também, meio que escondido, uma garrafinha azulada, de vidro, com água benta de Lurdes que, dizem, servia para de um tudo, e um pequeno pacote contendo selos. Quando foi depois do almoço ela foi para a Coletoria, sabendo que deveria ter ido logo pela manhã, mas sem se importar com o possível carão do chefe. Ela foi recebida com alegria e inveja, nesta ordem ou na ordem inversa, tanto fazia, e ficou satisfeita. Ela trouxera presentinhos para as companheiras de trabalho e também para o Seu Quintino.

2

Ninguém imaginaria que o pacotinho com selos que ela escondia, era o presente que a moça tinha trazido para seu chefe. Ele ficou babando quando Margarida passou-lhe o pequeno pacote com o logotipo da Filatélica Delcampe, de Roma, contendo uns selos triangulares da Etiópia, com leões e cobras, em verde, vermelho e azul, raríssimos. Ele era um filatelista e ela era uma das poucas pessoas na cidade que sabia dessa sua mania. Imagine se sabem que Seu Quintino coleciona selos! Ele tinha herdado a paixão por eles de seu pai e de seu avô. Este fora um homem importante no começo do século, pois fora advogado, professor no Liceu e um político, infelizmente oposicionista. Cargos na família eles nunca tiveram e só com o trabalho puderam galgar alguns poucos postos na administração. O forte da família era o ensino – professores e donos de colégios – e participações no comércio. Seu pai fora sócio de uma das grandes firmas importadoras de automóveis da capital. Seu Quintino havia seguido carreira na burocracia estadual, na Secretaria de Fazenda, e tinha chegado a Coletor. Para assumir a Coletoria ele, ou melhor, seu pai teve que dar garantias ao Estado. Ele estava agora em Granja e às vésperas de ser transferido para Fortaleza. Estava satisfeito. Ele havia feito boas amizades na cidade, principalmente entre os comerciantes de quem tinha de cobrar os impostos – sempre mais altos e que os fazia quebrar, ele sabia. O que fazer, pois ele tirava daí o sustento de sua família. Quando a filha do Seu Artur conseguira a colocação na Coletoria ele ficou animado, pois sabia que a família dele era gente muito boa e muito inteligente, se bem que isso não contava muito na maioria dos círculos. Mas ela se mostrou uma garota trabalhadora e os dois se tornaram amigos. Ela sabia de seu pecadilho de filatelista e o estimulava fornecendo-lhe selos que chegavam na correspondência de casa. Ele agradecia com muitas gentilezas. Era por isso que o povo da cidade falava de um caso entre eles – que não tinha nada a ver. Não obstante, Seu Quintino tinha outros pecadilhos entre os quais o de ser um raparigueiro de marca, mas meio enrustido e também gostava de promover festas, sempre no mês de julho, a Festa do Chitão, que durava uma noite inteira de sábado e para a qual ele convidava amigos da cidade e de toda a Zona Norte.

3

Depois da farra da distribuição dos presentes que Margarida tinha promovido pela manhã, Chiquinho e Letícia foram preparar os deveres para as aulas do Colégio. Eles estudavam na parte da tarde e só voltavam depois das seis horas quando seu pai estava voltando da loja e Margarida já tinha chegado da Coletoria. O menino era mirrado, estudioso e já sabia datilografia, pois queria ser funcionário do Banco do Brasil. Ele tinha quase 17 anos e a Letícia andava pelos 14. Essa era danada e só vivia dizendo que queria ser atriz de cinema ou teatro, mas não se preparava para isso, mas como o irmão, já estudava datilografia e se preparava para o que desse e viesse. Emprego na Granja era muito difícil e ir para Fortaleza parece que Seu Artur não iria agüentar mandar mais dois.

Nessa noite o jantar foi puxado à galinha à cabidela, para comemorar a chegada da filha mais velha. Ela gostava de galinha preparada de todo jeito, mas tinha sempre de ser galinha caipira, dos matos, dessas que comem matinhos e pedrinhas, nada dessas galinhas que estão vendendo agora, de aviário, dessas ela não gostava. O jantar foi puxado a vinho, pois a moça gostava de tomar um bom vinho tinto, costume adquirido em suas viagens à Europa, principalmente à Itália, onde nas cantinas come-se tudo, mas sempre acompanhado de um bom vinho da casa, geralmente um Chianti. No jantar o vinho era mesmo nacional, pois na Granja, nada de sofisticado chegava mais, pois os tempos bons mesmos, quando se tinha até vinhos franceses, já tinham passado há muito. A refeição, como era normal em sua casa, foi puxada por uma conversa animada: todos queriam saber o que ela tinha visto, visitado nas estranjas e Margarida querendo saber o que tinha acontecido na pequena cidade. Quem tinha morrido nascido, casado, quem estava de caso e, na família, como iam os estudos dos dois mais novos e que notícias tinham dos outros que estavam em Fortaleza. Da Mãe, ela queria saber como iam as atividades na Igreja e do Pai, como iam os negócios, sempre ruins, como sabia que ele responderia. Sobre política falava-se pouco, pois depois que o novo oligarca tinha tomado o poder o silêncio sobre o assunto na casa de Seu Arthur tinha reinado. O jantar e as conversas estavam demorando, mais do que o normal e o Chiquinho já estava ficando nervoso, pois ele tinha marcado encontro com a Delite e já passava das oito. Ele fez um sinal para Nair, a menina que serve à mesa, e pediu um pouco de doce de caju em calda, tomou um gole dágua um só, e saiu correndo. Sua mãe dá-lhe uma ordem que ele mal ouve:

- Olha lá Chiquinho não vai voltar depois das dez!

- Sim mamãe! Amanhã tenho prova com o Padre Adilson, logo às sete horas!

4

A Delite era colega de turma do menino e os dois se conheciam desde quando eram bem crianças. A menina era uma moreninha, de cabelos lisos e olhos negros, amendoados e parecia uma indiazinha. Ela já era moça feita, como se dizia, e agia como tal. Gostava de se cuidar e de se enfeitar e conseguia encher o Chiquinho de ciúmes com seus olhares e conversas com os outros coleguinhas. Mas, bolinação era só com o Chiquinho, de quem gostava muito mesmo. O que era surpreendente, pois suas colegas todas sabiam que ela era uma namoradeira de marca maior. Nessa noite ela esperava pelo namorado em frente de casa, na Praça da Matriz e quando ele chegou saíram para dar uma volta na Avenida e depois sentaram em um dos bancos mais internos do passeio, já desfigurado. O que eles conversavam depois de terem passado a tarde toda no Colégio era segredo de namorado. Mas o que eles faziam estava quase à vista de todos, pois não escondiam de ninguém seus intensos carinhos. Após uns poucos beijos quentes Delite vira-se para o namorado e, franzindo a testa, pergunta com um sorriso estranho:

- Chiquinho você não está sentindo um cheiro esquisito?

E ele:

- Esquisito como?

E ela:

- Assim como se fosse xixi. Veja aí atrás, pode ser que alguém tenha urinado atrás do banco.

O menino inclinou-se para olhar atrás do banco de cimento frio e, empertigado, disse nervoso:

- Não tem nada aqui atrás! Você ta impressionada com alguma coisa! Não sei por que isso agora.

A menina lhe diz do problema que tem nas narinas, diagnosticado pelo otorrino de Sobral com quem ela se consultara havia uns poucos dias.

- E o que foi que essa besta disse? Falou o menino.

- Ele disse que eu tenho uma rinite crônica que prende os cheiros por muito tempo e desse modo eu sinto mais que as outras pessoas. Ele até passou um remédio para botar no nariz, só uma gotinha em cada narina, todo dia. Ele diz que remédio bom para fazer efeito só precisa de uma dose pequena. Vamos ver, mas eu acho que não estou melhorando depois de quase uma semana.

Chiquinho se desconcerta um pouco com essa história e resolve ir para casa:

- Posso pelo menos lhe dar mais um beijinho?

- Certamente, seu bobo. Disse ela fazendo um muxoxo, sem que ele visse.

5

No dia seguinte o Tio Ângelo – chamavam o velho de “Seu Anjo” - passou em casa e convidou Chiquinho para um fim de semana no Serrote. Esse irmão de seu pai morava na velha fazenda que fora da família e onde criava uns bodes e plantava alguma coisa, além de tirar o carnaubal. Ele dizia que a cera não dava mais lucro, não era como naqueles tempos, mas ele insistia no ofício, o que era um mistério. Sua mulher, a Titia, e ele viviam isolados, mas perto da cidade de modo que estavam sempre de visita ao irmão. O menino era como que o filho que eles não tiveram. No sábado pela manhã o velho passa para pegar o menino que vai à sua garupa e só leva uma muda de roupa, pois na fazenda ele tem tudo de que precisa, pois a Titia insiste em manter lá um monte de roupas e outras coisas dele. É uma viagem curta e logo ao chegar ele vai procurar o Carlito, o filho do morador, seu companheiro de brincadeiras desde muito tempo. Saem os dois para a beira do rio, tomar banho e por as conversas em dia. Quando está na hora do almoço eles ouvem o chamado do Tio Ângelo e saem correndo para lavar as mãos. Hoje o Carlito almoça e janta na Casa Grande. A Titia preparou junto com a Dona Carminha, a mãe do Carlito, uma carne de carneiro cozida e com muito molho de que o Chiquinho gosta muito, principalmente se tiver um osso com tutano. Após se fartar da carne e do arroz branquinho e da farofa de torresmo ele espia logo para ver se tem os doces de sua preferência: o de goiaba em calda, o de banana em rodela, o de mamão com coco. Ele adora doces e faz uma verdadeira salada com eles. Mas não engorda. Não se sabe por quê. Já o Carlito também gosta de doce e come muito e é bem gordinho, aproveitando tudo o que come. A tia é muito preocupada com a saúde do sobrinho e sabe do seu problema noturno, como não podia deixar de saber. Após o almoço os dois meninos saem à procura de algumas cabras que estão desgarradas e só voltam no fim da tarde depois de tomarem um novo banho no rio. À noitinha eles tomam café com leite e comem cuscuz com nata de coalhada. A tia fica olhando para o sobrinho para ver se ele regra o refresco de tamarindo que toma. O Carlito se despede e vai com sua mãe para casa, bem pertinho, pegada ao curral. Antes de sair Dona Carminha arma a rede do Chiquinho no lugar costumeiro na sala bem pegada ao quarto do casal. Ela sabe que a tia do menino vai precisar tê-lo perto nessa noite.

6

Ele entrou no pequeno barco que estava ancorado à beira do rio e, remando com força, leva-o para o meio da correnteza que era forte naquele trecho. Não sabe mesmo porque razão teve de levar a pequena embarcação para o meio do rio, mas o fato é que em pouco tempo perdeu o controle e começou a ficar preocupado. Será que eu vou poder remar para a margem? Pensava ele. Nessa altura ele sente que o barco está fazendo água, que entra por diversos orifícios no fundo. Subitamente ele acorda com um barulho de líquido caindo sobre metal – é o seu xixi caindo na bacia de alumínio que Dona Carminha tinha colocado debaixo de sua rede, de ordem da tia. Ele não podia fazer nada, mesmo porque não houve tempo. Como o dia já tinha amanhecido logo chega a Titia e, com um sorriso maroto, pergunta a ele o que havia acontecido. Ele diz encabulado:

- Eu sonhei que tava remando num barco lá no rio e depois começava a entrar água por baixo...

- E aí você deu uma tremenda mijada, meu filho... Agora eu quero ver se a sua urina é doce. O povo diz quem tem urina doce tem diabetes mija na rede. Pode ser que isso explique esse seu costume, Chiquinho. E aí a gente pode ver se sua doença tem cura ou não. E completando ela diz:

- Será que a Delite já sabe disso? E olhou para ele com ar de mofa. Mudou de assunto e disse:

- Vamos ver que gosto tem...

Toma uma colherinha de chá e mergulha no líquido amarelo citrino que se acumulou na bacia de alumínio e recolhe uma dose. Leva aos lábios, experimenta com a língua e não satisfeita põe o líquido na boca e o engole:

- Chiquinho, é doce, mas não é como doce de goiaba de que você tanto gosta. Acho que você não tem diabete não. E o xixi na rede pode ser que não tenha nada a ver com isso. Você vai ter mesmo que ir ao médico com sua mãe.

7

Incontinência urinária juvenil ou IUJ era este o mal do Chiquinho. Quem disse isso foi o Dr. Zé Maria, de Sobral, ao fim da conversa que teve com o menino e sua mãe.

- E o remédio para isso doutor? O menino ta crescendo e também estragando tudo o que é de rede e lençol e o assoalho que no quarto dele é de taco!

- Não tem muito que fazer, pois a Medicina é moderna, mas é omissa nesses casos. Certamente algumas medidas paliativas podem melhorar o quadro. Falou o Dr. Zé Maria.

- E que medidas são essas, Doutor? Pergunta aflita a Mãe.

- Vejamos: não beber depois das seis da tarde, colocar um urinol de ágata desses altos no quarto, colocar uma bacia de alumínio debaixo da rede, dar três voltas ao redor da mesa do jantar com a rede de dormir sobre a cabeça e rezar para Nossa Senhora do Junco todas as noites, essa parte na presença de todo mundo.

- Mas Dr. Zé Maria, nem uma pílula ou xarope?

- Nada disso! E além do mais uma coisa é certa, quando ele casar isso sara completamente.

- Ta certo Doutor, obrigado. Até a próxima vez.

E dirigindo-se para o filho que estava com os olhos esbugalhados e quase chorando:

- Vambora Chiquinho!

- Chiquinho você nem me contou... Eu soube que você foi ao médico em Sobral com sua mãe?

- E quem foi que lhe contou? Égua, aqui na Granja a gente não pode fazer nada que todo o mundo sabe na hora.

- Menino, eu não sou “todo mundo” não!

- E quem foi que lhe disse?

- Foi a Clarisse da Dona Joaquina. Ela disse que viu vocês no consultório do Dr. Zé Maria.

Flagrado antes de arranjar uma mentira melhor, Chiquinho admitiu ter ido para se consultar de alguma coisa chamada de “Incontinência” e que tinha a ver com problemas do crescimento... Delite olhou para ele e sem acreditar de todo disse:

- Incontinência? Você num ta nem no Exército! Olha lá Chiquinho se você tiver mentindo para mim, nunca mais quero te ver!

- Num tem nada de mentira Delite! É que eu tenho muita coisa pra estudar, você bem sabe, e não to conseguindo. E lá em casa fica todo mundo perguntando como eu vou no Colégio. Agora que a Margarida chegou, eu só queria que você visse, ela quer ver minhas notas a toda hora.

- Bem feito de você num estudar direito...

- Mas eu vou resolver tudo isso.

Eles estavam meio perturbados com essa conversa e não deu tempo de namorar, namorar mesmo como se deve namorar.

Chiquinho fez um pouco de carinho na menina e puxou-a para dar-lhe um beijo e disse:

- Deixa eu ir Delite já estou ficando com sono e preciso estar bem aceso para a aula de amanhã.

8

O menino tinha outros planos e logo que chegou a casa conseguiu encontrar, na Eletrolux, entre garrafas de coca-cola, de cerveja, jarras com suco de tamarindo, feijão de ontem, carne moída e o escambáu, a garrafinha azulada com a água de Lurdes que Margarida havia trazido. Ele olhou para um lado e para o outro e enrolou a garrafa em uma toalhinha e saiu para o banheiro do seu quarto, levando também um abridor de garrafas e uma colherinha das de chá. Trancado no banheiro ele abre a garrafa com cuidado para não marcar a tampa de metal e põe água na colher até enchê-la. Põe o líquido na boca e fica esperando sentir um gosto ou não gosto diferente do gosto de água ao qual ele está acostumado, mexe com a água na boca e, sem mais esperança de sentir alguma coisa sobrenatural (seria?) ele engole aquela esperança líquida de uma só vez. Fecha a garrafa e, pé ante pé, a coloca de volta com precaução na mesma posição na geladeira. Volta para o quarto e deita em sua rede vermelha, que sempre recendia a mijo.

Chiquinho acorda cedo e, sentindo-se como sempre, todo molhado de urina olha para a bacia e vê que ela guarda tanta urina como nos dias anteriores.
À noite ele toma uma outra colherinha de chá da água trazida de Lurdes pela irmã e, novamente, amanhece mijado e, aparentemente a mesma quantidade de urina está na bacia. Isto o deixa chateado, mas não pensa em desistir da experiência: ele quer saber mesmo se os poderes milagrosos da água benta de Lurdes o curarão e decide aumentar a dose, pois não acredita nessa história de que dose pequena é que faz efeito. Chega à noite e ele retoma o ritual de apanhar a garrafinha e tomar uma colher da água, só que agora é uma colher das de sopa que ele ingere. Chega a manhã e ele vê que ainda não foi dessa vez que a urina na bacia diminuiu, mas na quarta noite, depois de tomar, mais duas colheres de sopa ele notou que a mijada tinha sido bem menor do que as anteriores. Resolvido a ir em frente com sua experiência Chiquinho resolve tomar três colheres de sopa; ele apanha a garrafinha de água na Electrolux e a colher de sopa, toma todas as precauções, mas nota uma pequena mossa na tampa e também, coisa que lhe tinha passado despercebida, a água na garrafa está diminuindo. Ele muda o plano original e toma quatro colheres de sopa e com isso, segundo vê, o nível da água desceu perigosamente para quase a metade do que havia antes. Seja o que Deus quiser, pois se a experiência, ou melhor, o milagre funcionar a Margarida vai entender. Quando acorda sente que não está molhado e, olhando para a bacia embaixo da rede, Chiquinho vê que ela está sequinha...

9

Margarida abriu a geladeira e procurou a garrafa de água benta de Lurdes, que havia trazido. Bem escondida, lá no fundo, ela viu a garrafinha azul, puxou-a para frente e logo viu algo de errado, pois o líquido estava quase pela metade. Quando a pegou na mão notou também que havia uma pequena mossa na tampa de metal. Era mais que evidente que alguém tinha aberto e usado, de alguma maneira, o conteúdo da garrafinha.

- Eu acho que foi o Chiquinho; há uns três dias eu vi ele pegando essa garrafinha azul, disse a Rosilda.

- Será? E como anda o xixi dele?

Rosilda disse para a moça:

- Olha Margarida já faz uns dias que ele não mija! Eu não sei o que aconteceu...

- É mesmo? Chama ele aqui!

Daí a pouco chegam o Chiquinho e a Rosilda vem logo atrás. A irmã do menino pergunta:

- Chiquinho o que é que você fez com a água que eu trouxe de Lurdes?

- Eu?

- Sim você mesmo! Aí ela mentiu e disse:

- Eu vi você mexendo na garrafinha azul...

- Ta bom, eu mexi. Mas só tomei umas colherinhas.

- E pra que?

- Ora você mesma disse que essa água é milagrosa e eu queria saber se ela fazia mesmo milagre!

- Você podia ter falado comigo, vai que a água te fazia mal...

- Ta certo, mas agora ta na casa do sem jeito, você me desculpa eu ter tomado sua água.

- Minha água? Oh bestão pra que é que você acha que eu trouxe essa garrafa de água benta lá de Lurdes, na França, a milhares de quilômetros de distância? Ela olhou para o irmão e deu uma gargalhada.

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