Tuesday, December 15, 2009

HISTÓRIAS DE JORGE RAPOSO 33

O CIRCO SHANGAI

Jorge estava sentado em sua cadeira na sacada lendo mais um dos muitos livros que já havia começado, praticando assim a sua mania de ler tudo de uma vez, como ele dizia e se isso fosse fisicamente possível. O Dom Quixote estava merecendo um tratamento especial: era muito bom, mas como era volumoso, umas mil páginas em dois tomos, estava levando mais tempo para ser devorado do que outros. Mas não seria tempo perdido. Jorge, muitas vezes, gostava de se imaginar como um sonhador, combatendo inimigos imaginários, como o “cavaleiro andante”. (...)


Seria muita pretensão dele? Provavelmente. Ele teria de procurar um significado mais adequado para seu comportamento irascível. Ele se rebelava contra tudo e todos. Contra o governo, contra os outros motoristas (quando ainda guiava). Adorava provocar irritação em outras pessoas mesmo sabendo que corria risco grande de ser agredido fisicamente em retorno. Lembrava-se do tempo em que morava na Lagoinha, um pequeno bairro quase no centro da cidade quando chegou a trocar sopapos com um colega que era primo distante de sua mãe. O motivo para a briga era o ciúme que o Tico lhe provocava toda vez que a garota em que ele estava interessado passava gingando por eles. Sempre que lembrava dessa briga Jorge caia em seus devaneios e se transportava para uma época anterior.

O circo era sempre montado em um terreno baldio na Lagoinha. Era o Circo Shangai. Era o que se chamava um circo mambembe, mas tinha alguns bichos e uma trupe de “artistas”. Toda noite tinha função, mas como era pobre, somente os poucos animais, os palhaços e os dramas que apresentavam tinham sucesso. Toda a turma da qual ele achava que pertencia ia, aos sábados, à apresentação das oito horas da noite. Havia uma pequena orquestra que tocava desesperadamente tentando animar a assistência. Era sabido que os presentes só se alegrariam mesmo quando os palhaços entrassem em ação. Jorge entrou com os companheiros e procurou assento nas arquibancadas quase desequilibradas que acompanhavam o círculo, típico dos circos. Havia cadeiras, mas estas eram mais caras e ficavam longe da bagunça que eles iriam, com toda certeza, fazer. Além do mais ficariam separados das meninas que sempre acompanhavam a turma na praia, nas festas e, com sorte, no cinema. Ele sentou-se numa arquibancada bem próxima ao chão e ficou, ao lado do Robertinho, esperando o começo da primeira apresentação da noite. Quando a garota chegou com sua turma ele ficou observando-a e vendo como ela era charmosa sem ser bonita; a pele era branca sem agredir e o cabelo castanho, mais comprido do que curto. Ela subiu rapidamente, passando ao seu lado, sem muito esforço, para a última arquibancada; sentou-se e ficando com a cabeça quase encostada na empanada do circo, começou a olhar, como que procurando alguém. Ele sentiu um frio no pé da barriga quando seus olhares se cruzaram e ela lançou um sorriso atrevido para ele. Jorge começou a tremer sem saber que atitude tomar. Sua experiência com as meninas era quase nenhuma. Deixou passar o tempo, vieram os palhaços que abriram a sessão de piadas imorais, como se dizia e que provocavam o riso de todos, como devia ser. Em seguida entraram os animais: a onça, animal nacional ainda não protegido pelas leis ambientais, o leão caindo aos pedaços e mais uns poucos bichos que, todos, pareciam famintos; dizia-se no bairro que o povo do circo comprava gatos para alimentar sua coleção de carnívoros. Os herbívoros, não se tinha ideia do que comiam talvez grama. A parte final consistia de um drama, dramalhão para dizer a palavra certa. A história girava em torno de um casal que a mulher traia o marido com um amigo; a palavra corno era ouvida com frequência. Jorge lembra-se do fragmento de um diálogo quando o amigo que traia o marido falava com ele sobre a amante:

-Esta “muler está bêbida!”

Ele não lembra mais muita coisa do circo. Do que lembra foi de sua ação em relação à garota que estava sentada na última arquibancada. Ele tomou uma decisão. Quase aos pulos subiu até junto a ela e sentou-se. Começou a olhar e ela retribuiu sorrindo. Ele fez algo de surpreendente para ela e também para ele: deu-lhe um beijo na boca. Havendo ela correspondido, sorriu e os dois ficaram conversando e saíram juntos do circo. Pareceu-lhe que seria agradável conversar mais com ela...

A pintura é "O circo" de G. Seurat

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