Saturday, December 12, 2009

CONTOS DA RIBEIRA 20


CONTAS A PAGAR DEPOIS DA MORTE

No dia do batizado da menina, na Igreja Matriz, feito para apagar sua parte no pecado original de todos nós e mais os seus poucos adicionais, pelo Padre Vicente, estava presente a fina flor da sociedade varzeana. Era uma verdadeira multidão a prestigiar o batizado da primeira filha do Coronel Rabelo, o chefe conservador local. Daí a menina ficou com o batistério que lhe dava a data do seu nascimento e a do batismo, além dos nomes de seus pais e os dos padrinhos. Isso foi antes da Lei do Registro Civil e quando esta foi implantada, ela já uma mocinha, foi registrada no Cartório do Capitão Rocha Franco e obteve a certidão de nascimento. (...)


Passaram-se os anos e ela não precisou de mais nenhum registro, mas os atestados médicos eram muitos e necessários para justificar as faltas no Colégio das Irmãs; todos eles firmados pelos mais afamados médicos da cidade e da capital, como os doutores Vieira e Para-campos. Aí chegou a Nova Ordem para por ordem na bagunça documental que, eles diziam, reinava na terra; não sabiam o que viria por aí. O rei ou quase um ordenou a emissão de novos documentos. Um desses, com seu número acompanhante, e importante, que um menino, mas não uma menina, como era o caso, tinha de tirar foi o certificado do serviço militar com o retratinho de bibico, assinado pelo Coronel Abreu, coronel mesmo dos legítimos; felizmente ninguém ia para a guerra, nem como enfermeira, pois ela não chegava até eles, nem mesmo a Natal. Quando moça, pretendeu viajar para a Europa na excursão do Padre Monteiro, que organizava verdadeiras turnês ao Velho Mundo, ela teve de ir até a Polícia Marítima para tirar o passaporte com um retrato em que suas orelhas eram obrigadas a aparecer, à custa de grampos. Identidade só precisou mais tarde, mas ainda era com o retrato em branco e preto e com as impressões digitais. Mais tarde também vieram as carteiras de bicicleteira, motoqueira e motorista, todas obtidas após exames rigorosos. Essa última foi seguida pelo título de eleitor, com e sem retrato, com e sem digitais, dependia da ocasião e também de um atestado de vida e residência que era complementado por um atestado de bons antecedentes; as eleições estavam chegando e ela seria obrigada a votar, como na Etiópia, nas Ilhas Cayman, etc. Após a eleição do “Mão de Ferro” e a implantação dos novos impostos de renda, de venda, de compra, de comida, de leitura, de cinema, de praia, e todos os outros, cada um com seu número apropriado, descobriram que teriam de implantar o registro geral das pessoas do país, o RGPP, para terem um controle mais eficiente do que fazem ou deixam de fazer as pessoas, até mesmo as criancinhas de poucos dias, pois estas danadinhas já fazem muitas coisas logo que nascem, não somente o seu cocozinho. Daí foi um passo para o documento dito final, aquele que unificaria todos os já existentes. Este seria impresso em papel de arroz chinês, com marca d´água – armas da república e do tuxaua do momento – e com um chip que traria todas, todas mesmo, informações sobre o paciente, ou melhor, sobre o portador, no caso a cidadã. A filha do Coronel Rabelo estava cansada e já estava velha e ficava de saco cheio com toda essa história de cartão, certidão, atestado, retrato, digital, chipe e o que de novidade aparecia nas páginas digitais. Foi daí ela teve um problema, um problema bem sério e teve que ser internada no Hospital da Montanha. Ela ainda viu, quando foi admitida, de maca, a enfermeira gordinha, depois de agarrar seu dedo e colocá-lo naquela maquininha que lê as impressões digitais e utilizando uma caneta digital de última geração, capturar todos os seus dados a partir de uma ficha que sua filha Waldiana havia preenchido no laptop. Ela passou uma semana inteirinha fazendo exames, escaners, expressos em bilhões, zilhões de bits e, ao fim, apesar dos médicos amigos, ela teve mesmo de empacotar. Não houve recurso algum. Olhando de longe, - de cima ou de baixo? – a filha do Coronel Rabelo descobriu que nem seu passamento a deixaria sossegada no que diz respeito à numerologia e à ordem que sempre a perseguiram. Após o imenso trabalho que deu a seu marido e à sua filha quando da abertura e fechamento do inventário de seus humildes possuíres observou a insana procura de sua identidade pelos poucos que queriam registrar a compra de algum dos bens de sua meação. Todos queriam uma cópia de seu RGPP, atualizado, e sua última declaração de Imposto de Renda. Eles não se satisfaziam com uma cópia xérox de sua Certidão de Óbito, queriam sempre a declaração original.

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