Saturday, December 05, 2009

CONTOS DA RIBEIRA 19

PADRE JOSÉ LISBOA

Da varanda da casa elas viram o novo padre passar na direção do Rio e pensaram que ele fosse visitar o Tio Manuel Rufino que estava doente. Só depois é que souberam da notícia, dada pelo primo José, que naquele mesmo dia o tal padre tinha ido era para um banho no Cupu, o poço mais profundo do Rio, pelo menos perto da Lagoa. A notícia logo se espalhou, pois era uma grande novidade um padre tomar banho no Rio, ainda mais nu, como José contou: O padre havia chegado acompanhado do Chiquinho, que ia apanhar água para a Casa Paroquial, foi logo sem cerimônia tirando a batina e tudo mais e mergulhando nas águas frias e profundas do Rio cheio; os dois passaram um bom tempo e daí o Padre se enxugou e se vestiu e foram embora. (...)


O padre era jovem, talvez tivesse uns trinta anos, se muito; era bonito a tal ponto de as pessoas o acharem parecido com Tyrone Power, o ator de Hollywood. Essa notícia do banho no Rio tinha alvoroçado a população feminina e, por que não dizer, também a masculina, certamente por motivos diferentes. Segundo as mocinhas e, em geral a quase totalidade das senhoras da cidade, ele só tinha um defeito: era padre e além de tudo o novo Vigário da paróquia. O padre José Lisboa tinha sido nomeado para ocupar o lugar do velho Monsenhor Arthur falecido recentemente. Monsenhor Arthur tinha sido vigário da Lagoa por quase quarenta anos, desde o começo do século e todos na cidade tinham se acostumado com o velhinho. Ele era compadre de todo o mundo e todo o mundo era seu afilhado. Era uma verdadeira instituição assim como a Matriz de São José, a igreja mais do que centenária da Lagoa.

Logo que Padre Lisboa assumiu seu posto criou diversas associações que, segundo suas conversas com amigos, que os fez logo, iriam dinamizar as atividades da paróquia. Uma dessas era a Associação das Senhoras de Caridade para o Amparo às Pessoas Necessitadas ou simplesmente ASCAPENE, como passou a ser conhecida em toda a cidade. Suas reuniões eram mensais e realizadas na Sacristia da Igreja quando compareciam toda a Diretoria e mais outras jovens moçoilas e senhoras curiosas, certamente com interesses bem pouco filantrópicos. O padre era também visto todos os fins de semana tomando uma cervejinha com os novos amigos. Entre esses, como é natural, havia homens respeitáveis de todas as extrações, desde comerciantes, donos de cartórios, criadores de bodes, fazendeiros, funcionários da RVC e dos Correios; não havia bancários e nem industriários, pois não os havia em volta de muitas léguas. A presença ocasional de alguns capitalistas era notada por todos, pois raramente eles saiam de casa e isso demonstrava o prestígio do Padre Lisboa. Política nacional e internacional, os preços dos couros e peles, da cera, do algodão era o que se conversava nessas rodas. O esporte de falar da vida alheia ainda não chegara até elas, pois o padre, ainda pouco conhecido e, mesmo sendo um servo do Senhor, os amigos não deviam envolvê-lo nas histórias. Outro assunto proibido eram as mulheres, pois todos ficavam com o rosto avermelhado quando o padre chegava a olhar de soslaio para uma jovem que passava e olhava rapidamente para ele.

Padre Lisboa fez também amizade com alguns dos rapazes da cidade, desses que foram ficando na Lagoa sem perspectiva de um bom emprego e, como não haviam estudado fora, tinham de amargar uma pequena sinecura na Prefeitura; o que recebiam era quase uma esmola, pois não ganhavam porque não trabalhavam, e não daria para sustentar uma casa com mulher e filhos. Vai daí que não havia nenhuma das moças bem comportadas que quisesse alguma coisa com qualquer um deles. Entre estes estavam o Carlinhos e o Ricardinho, filhos de gente da alta e que, a rigor não faziam nada. Mas tomavam cerveja e gostavam de um carteado. Padre Lisboa era sempre convidado para compor uma mesa de buraco na casa de um deles, completada com outras pessoas amigas. Essas reuniões eram apreciadas e todos se esmeravam em tratar o novo amigo do modo mais gentil e até o deixavam ganhar no jogo. A conversa, de costume, era mais importante do que o jogo e os assuntos variavam segundo os componentes da mesa. Nada de assunto picante quando estava presente alguma das irmãs dos dois rapazes ou seus pais. Mas, quando eles estavam sós gostavam de provocar o padre para saber como andavam suas pretensas conquistas.

Padre Lisboa era reservado ao extremo nunca dando indicação maior de que algum tratamento diferenciado a moças e jovens senhoras, como era de se esperar, ele dava. Mas a rapaziada insistia, dadas as demonstrações ocasionais de interesse mostradas por ele. Ele tinha a firme convicção de que nada do que ele fora ou era poderia transparecer para a comunidade, para os fiéis, seu novo rebanho na Lagoa. Mas o grande problema que o Padre Lisboa teve foi a impossibilidade de evitar olhares magnéticos que cruzavam o ar lançados pra ele e retribuídos toda vez que ele caminhava pelas ruas ou dizia missa ou participava de algum evento público.

No início de sua permanência na cidade Padre Lisboa só sabia que ela era a Fransquinha uma das primas do José, o rapazinho filho de Dona Veridiana, uma das mais assíduas e devotadas sócias da ASCAPENE. A moça, talvez tivesse uns vinte e dois anos, e de seu posto na lojinha em que trabalhava, sempre via o padre em sua passagem pela calçada da rua que levava à Praça da Matriz e, como todas suas amigas, olhava para ele com olhares cúpidos. E o pior é que ela sorria um sorriso lindo. Ele não tinha alternativa senão corresponder ao sorriso, a princípio recatado, mas depois dos primeiros dias, um pouco mais solto. Padre Lisboa, afoitamente, resolveu inverter sua passagem para testar se a moça prestava mesmo atenção a ele. Não é que ela, no instante em que ele apareceu, vindo em sentido contrário ao usual, estava com seu sorriso esperando pelo dele? As dúvidas do Padre Lisboa se foram e os problemas chegaram pensou ele. E a mocinha também.

Quando chegava a casa, ele morava na Casa Paroquial bem atrás da Igreja, estimulado por esses encontros e olhares magnéticos trocados com a Fransquinha, lembrava de seus tempos de seminarista em Olinda. Lá, mesmo depois de ordenado, ele namorava abertamente uma moça linda filha de um comerciante e que se chamava Luciana. Infelizmente, ou melhor, felizmente, esse namoro não tinha levado a coisa alguma e ele voltara para a casa de seus pais, em Sobral. Aí ficou esperando que o Bispo lhe nomeasse para a paróquia onde pretendia ficar por muito tempo. Sua preferência era o trabalho em um lugar pequeno onde tivesse possibilidades de fazer amizades com gente importante, pois era ambicioso e pretendia galgar posições na hierarquia na Igreja. Tinha de começar de baixo, para aprender tudo. Padre Lisboa esperou pouco tempo até ser nomeado Vigário da Lagoa. Quando Neide, sua amiga sobralense, soube que ele iria embora deu um escândalo que, felizmente, não foi presenciado por muita gente, pois foi na própria Sacristia da Igreja de São Bernardo e só seu amigo João, o sacristão, presenciou.

Logo que desembarcou na estação da Lagoa e se encaminhou para a Casa Paroquial, levado pelo Aniceto, o sacristão da Matriz, ele viu pelo tipo de pessoas que encontrava no caminho longo de quase mil metros que iria se dar bem. Ele não queria prestar atenção nas moças, mas era inevitável, pois elas estavam todas às janelas tendo sabido que ele desembarcaria no trem das quatro, como aconteceu.

Chegando à Casa Paroquial ele foi apresentado a Dona Mariana, a senhora que lhe serviria de governanta e também de ajudante em algumas tarefas na própria Igreja Matriz. Estava presente também o Chiquinho, menino de recados e botador de água, tendo para isso que cuidar dos dois jumentinhos de propriedade da Paróquia.

Além das atividades normais da Igreja, que ele teria de organizar, pois foram deixadas em lastimável estado por Monsenhor Arthur, coitado já bem idoso e quase cego com uma catarata nunca operada, Padre Lisboa iniciou visitas a seus paroquianos mais necessitados, sempre preparadas, pelo grupo de senhoras que faziam parte da ASCAPONE. Dona Mariana e Aniceto também ajudavam nesse mister e, com o passar dos dias se tornaram amigos sem chegar a serem confidentes.

Padre Lisboa achava que tinha muito trabalho, mas não se queixava desde que suas amizades, a cervejinha e o carteado ocasionais não lhe fossem de algum modo proibidos ou censurados. Das compensações terrenas ele cuidaria. Pensava ele.

Mas, desde a tarde em que Fransquinha, afoitamente, fora até a Sacristia, onde ele estava preparando homilias para as próximas missas, levando um bolo de rolo de goiaba para ele e, logo pedindo a Dona Mariana para fazer um café, que o coração do Padre Lisboa deixou de bater em ritmo normal.

Parece que o cão atenta, pois Dona Mariana, já em idade que não lhe dava muitas esperanças sentiu, nesse dia, na sacristia, o ar magnetizado quando os olhares de Fransquinha e do Padre Lisboa se cruzaram. O que ela fez foi baixar a cabeça e sair silenciosamente, sem antes dizer que ia preparar o café e se os dois quisessem tomá-lo, quentinho, atravessassem a rua e fossem logo até a Casa Paroquial. Lá Padre Lisboa poderia experimentar o bolo de rolo na varanda de trás sem que ninguém xeretasse.

A partir desse dia Padre Lisboa não teve mais sossego, não porque as pessoas falassem alguma coisa, ainda não, mas devido ao fato de que ele não se satisfazia com o sonho sonhado, pois queria sempre o sonho realizado, como havia lido em um livro de Nelson Rodrigues. Foi isso o que havia acontecido em Olinda e depois em Sobral. Ele queria se enredar e ele e a mocinha se enredaram de tal maneira que, no seu caso, mesmo rezando missa ou confessando alguém, não tirava o pensamento da Fransquinha nem no que estava acontecendo.

Na Casa Paroquial, aonde a menina ia quase todas as tardes que sabia estar o padre livre de outras obrigações, os dois conversavam muito e se enredavam ainda mais. Certo que o enredamento físico foi chegando aos poucos, mas chegou para gáudio dos dois.

Foi muito difícil para Fransquinha disfarçar seu enlevo e foi logo na casa do Tio Manuel Rufino que o primo José tocou no assunto. Os dois estavam sós na varanda da frente quando ele jogou uma indireta para ver se a prima caia. Apesar de pouco experiente Fransquinha ficou firme, mas como sempre nesses casos as suspeitas do primo José não foram eliminadas. Ele tinha certeza que a prima tinha um caso com Padre Lisboa. Mas, não seria por ele que o segredo se tornaria público. Já o padre passou a aparecer nas rodas de cerveja e de carteado bem mais eufórico do que de costume o que logo levantou suspeitas ao Ricardinho e aos outros. Os amigos do Padre Lisboa concordaram tacitamente que esse era um assunto que não devia ser discutido nem propagado.

Tudo ia bem para os dois namorados, pois as poucas pessoas que desconfiavam – não sabiam – não levavam o caso à frente. Era algo que não merecia investigação, até que surgiu na cidade, vindo de Sobral o Dr. Vanilo Bezerra. Este era um advogado recém formado que estava à procura de uma noiva rica para um contrato matrimonial. Dr. Bezerra era um exímio jogador de baralho e logo se enfronhou na mesa de jogo de Carlinhos e Ricardinho, a mesma freqüentada pelo Padre Lisboa.

Fransquinha e Padre Lisboa continuavam a se encontrar na Casa Paroquial sob a guarda de Dona Mariana sem maiores cuidados do que aqueles tomados até então. Os dois não tinham maiores preocupações mesmo porque Padre Lisboa havia instilado em sua amiguinha suas idéias a respeito do sonho realizado. E ela estava totalmente de acordo. Dessa maneira os dois viviam no melhor dos mundos.

O sonho realizado de Fransquinha e Padre Lisboa não durou muito tempo. Em uma manhã quente de segunda-feira Chiquinho chegou esbaforido da Matriz onde estivera ajudando o sacristão Aniceto a fazer uma faxina. Foi direto ao padre e pediu para falar-lhe na camarinha. A princípio Padre Lisboa quis negar-lhe o pedido, mas pensando melhor achou que o Chiquinho talvez tivesse alguma coisa importante para dizer. Longe das vistas de Dona Mariana, mas não certamente dos ouvidos, Chiquinho diz ao padre que Aniceto havia encontrado coisas estranhas espalhadas por toda a igreja e pedia que ele fosse até lá, mas fosse sozinho. O padre estranhou, mas achou que não podia deixar de ir atender ao pedido, pois certamente tratava-se mesmo de assunto muito importante. Foi acompanhando Chiquinho.

Logo ao chegar, já na porta da Sacristia, está Aniceto esperando-o. O sacristão leva Padre Lisboa até o altar mor e aponta para uma série de objetos jogados sobre a toalha imaculadamente branca. Ele imediatamente os identifica: são preservativos masculinos de borracha, as famosas camisas-de-Vênus. Os três andam por toda a nave da igreja e pelos outros altares e contam vinte pacotinhos de seis preservativos cada, alguns abertos. Há preservativos até nos dois confessionários!

Padre Lisboa volta às pressas para a Casa Paroquial para vestir-se e visitar uma das pessoas que pode ajudá-lo nesse difícil instante, pois imagina que se o assunto for tornado público ele certamente perderá sua posição de Vigário da Lagoa. Ele tem certeza disso. O Coronel Santos, um homem íntegro e muito bem preparado, um grande comerciante da cidade certamente o ajudará.

Ao chegar à residência do Coronel Padre Lisboa pediu para falar-lhe em particular e o velho o recebeu no Salão Azul, confortável ambiente do casarão. O padre soube, para sua surpresa, que a história já havia chegado ao Coronel que havia imaginado ser algo preparado por alguém que lucraria com a desmoralização do Padre Lisboa. O Coronel mostra-se compreensivo quando o padre o põe a par de seus entretenimentos com Fransquinha. Mas do que se trata agora é de uma boa estratégia para evitar que o escândalo se espalhe se ainda for possível. Eles decidem que havia duas coisas a fazer uma era mandar espalhar pela cidade que o acontecido não tinha acontecido, isto é, o que se havia encontrado não eram camisinhas, mas envelopes de comprimidos de Triofon o novo remédio para dor de cabeça e do qual se fazia muita propaganda. A outra iniciativa era Padre Lisboa viajar para Sobral e relatar tudo ao Bispo Conde a fim de atalhar qualquer notícia que houvesse chegado aos seus ouvidos. E tinha de ser no primeiro trem, infelizmente só na próxima manhã.

Padre Lisboa sai da estação de Sobral quase correndo para ir até o Palácio do Bispo e, surpresa quando ele já está na ante-sala à espera de ser recebido sai da mesma porta pela qual vai entrar o Dr. Vanilo Bezerra já seu conhecido da Lagoa. Também é só o tempo de cumprimentá-lo e entrar no escritório do Bispo Conde. Este o recebe com mais de mil pedras na mão e quase o expulsa sem nem dizer o porquê de sua explosão verbal. Mas, a rogo do pobre Padre Lisboa o bispo lhe diz o que o advogado acabava de lhe relatar na entrevista anterior. Padre Lisboa tenta por todos os meios e pede a interferência de todos os santos, mas o bispo é irredutível: ele está demitido da Paróquia da Lagoa, terá de vir para Sobral e ficar aguardando ordens; para seu lugar ele vai nomear o Padre George que será removido da Paróquia de Quatiguaba.

Passam-se dois meses até que Padre Lisboa possa volta a Lagoa para trazer seus poucos pertences e despedir-se dos amigos e amigas que eram muitos.

(A foto é de Tyrone Power - AllPosters.com)



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