Thursday, December 03, 2009

HISTÓRIAS DE JORGE RAPOSO 31

PRIMEIRA DESCIDA AO INFERNO


Jorge estava em sua cadeira de rodas. Só Suzana estava; ela era quase uma governanta e fazia de um tudo em casa, como ele gostava de dizer. Era durante a semana que ele se sentia mais só muito embora os sábados e domingos fossem também vazios. Como de costume, ele estava lendo, e ouvia um pouco de música. Ele ouvia um concerto de Mozart e quando terminou desligou o toca discos e pegou da pilha na plataforma da cadeira um dos livros que pretendia começar a ler. Abriu o volume novinho em folha - mais um livro sobre o Império Romano, sua atual mania - e sentiu o cheiro gostoso do papel cortado e da tinta de impressão que parecia ainda estar fresca. Ele sentia este cheiro apesar do livro ter sido comprado na “Amazon.com” e ser de uma edição do ano passado. Gostava do cheiro. Gastava bastante dinheiro na compra de livros; não gostava de ler livros emprestados, sempre tinha de comprar para tê-los. Isto, mesmo vendo que as estantes de sua sala de trabalho – o escritório - estavam atopetadas, com volumes preenchendo todos os espaços. Como lesse muito em inglês havia uma diversidade bem grande de assuntos também nessa língua. (...)


Ele estava imerso na leitura quando Suzana aproximou-se sem se fazer sentir, como era seu costume, dando-lhe sustos, e passou-lhe um prato cheio de pedaços de fruta, banana, maçã, e mamão, cobertos com “müsli” e mel de abelha. Ela se dava ao trabalho de cortar as frutas... Estas faziam parte de sua alimentação desde quando ele passou a ter a mania de controlar seu peso: pressão alta, velhice mesmo.

Voltou ao livro e, novamente, ficou isolado do mundo, envolvido com as lutas na Dácia...

Chegou à ant antesala, bateu com os nós dos dedos na porta do gabinete do Professor Rosado e esperou ouvi-lo dizer que entrasse. Rosado foi seu primeiro chefe no Laboratório, e era um autodidata com um conhecimento enorme e abrangente. Dizia que gostava de música sendo sua peça preferida o “Tema de Lara”, de Maurice Jarre. Rosado costumava dizer que se lhe dessem vinte e quatro horas ele daria aula sobre qualquer assunto, pondo ênfase em qualquer. Não precisava nem de livro para preparar a aula, pois tinha em casa tudo que precisasse. Após ter feito doutorado Jorge voltou e foi nomeado Diretor da Faculdade que era quase uma propriedade do “Mestre” como muitos puxa sacos chamavam Rosado; ficou este com a Chefia do Departamento. Jorge estava muito tenso, pois nos últimos meses teve de saldar dívidas que o “Mestre” fizera e ainda fazia, sem nem ao menos emitir empenhos; o total era alto, bem acima do orçamento da Faculdade. Havia muitas dívidas em dólares, principalmente as feitas com Santo Venazia, livreiro de Milão que, periodicamente, vinha à cidade cobrá-las e vender mais livros. Ele já não suportava a enorme pressão que sentia. Ao som da batida ouviu o velho – velho? Ele não era velho! - Dizer:

- Entre!
- Bom dia, Professor.
- Bom dia, Jorge. O que há?
- Não estou satisfeito na Direção e venho-lhe dizer que vou pedir demissão. Queria-lhe dizer antes para não causar problemas.
- O que foi que aconteceu, Jorge?
- Nada de importante, mas estou muito cansado e estressado e preciso de algumas semanas longe disso tudo. Vou para o interior amanhã.
- Jorge você é um camarada surpreendente! Eu não esperava isso... Enfim, está certo.

O pequeno discurso de Jorge tinha sido ensaiado com sua mulher que já estava preocupada com os modos de agir dele: calado, sem vontade de fazer nada. Ela o apoiou e foi inclusive com ele até a Faculdade tendo esperado o resultado de sua entrevista com o Rosado em sua ante-sala. Quando Jorge saiu, ela perguntou-lhe:

- Tudo bem?
- Tudo certo...
- Pois amanhã vamos para o interior e só voltamos daqui a duas semanas. Temos de ir de ônibus, pois o fusca está no concerto e não sai tão cedo.
- Certo...

Suzana pôs a mesa e o almoço e foi chamar Jorge. Quando se aproximou da cadeira ele acordou de um leve sono tendo ainda o livro sobre as pernas. Ela o ajudou a caminhar os poucos passos até a mesa de refeições e ele sentou-se. Almoçou o que ele dizia ser o seu normal, um pouquinho de salada, arroz, feijão e um bife. Tudo sem muita gordura, pois o colesterol andava um pouco alto e ele tinha de controlar o peso. Como sempre comeu um pouco de doce; este era seu pecado em matéria de comida; era difícil encontrar um doce do qual ele não gostasse.

Após o almoço ele deitou em sua rede vermelha, no quarto, pegou um outro livro que já tinha começado. Era o livro novo de Irving Yalom, “Mentiras no divã”, que trata do relacionamento entre terapeutas e seus pacientes. Ele estava gostando muito. Após ter lido algumas poucas páginas dormiu até o fim da tarde.



O quadro é “Virgílio mostra a Dante
o sofrimento dos condenados no
Infrerno”, por J. Segrelle


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