Wednesday, November 25, 2009

HISTÓRIAS DE JORGE RAPOSO 30

Man Smoking a Pipe, por Whistler, circa 1859 (Allposters.com)


O AMIGO DOCA

Vanessa e Jorge tinham ido para a Prainha passar o fim de semana. Ele gostava de ficar lendo, deitado na rede azul e olhando, de vez em quando, o mar de um verde-esmeralda de cegar. Após terem almoçado uma peixada de arabaiana regada com uma cerveja no restaurante do Seu Chico da Cruz, eles voltaram para casa. A moça foi ouvir um pouco de jaz no toca discos; ele não apreciava jaz, mas não se incomodava de ouvir. Ele podia ler sem perder a concentração mesmo ouvindo música que não gostava. Ele estava lendo o Dom Quixote; o livro se enquadrava no rol daqueles que ele sabia que deveriam ser lidos em sua tentativa de “quitar o seu tremendo déficit cultural”... Após ter lido dois ou três capítulos da segunda parte ele pôs o livro no chão, ficou olhando o mar e começou uma “sessão de pensamentos internos”.

Ele como que dirigiu sua mente clara para o tempo em que orientava estudantes de mestrado. Fixou-se em Doca, um de seus alunos preferidos, talvez porque ele o achasse bem-parecido consigo mesmo. (...)


Doca foi um dos melhores alunos que ele teve. Era um pouco mais velho do que a maioria, mas esta não era a razão de seu brilho. Nenhum de seus colegas gostava dele; diziam que ele era pretensioso e fuxiqueiro. Jorge não concordava e dizia que eles tinham ciúmes. Doca fumava muito, enquanto ele Jorge, já tinha largado o vício há bastante tempo. Viviam brigando, pois ele deixava cair cinzas e pontas de cigarro por todo o laboratório. Bom, isso era no tempo em que o câncer de pulmão e “a ecologia” ainda não estavam na moda. O Doca passou a esconder os resultados que obtinha. Jorge não tinha a menor ideia do por que dessa atitude. Ele descobriu que estava enciumado com o Doca pelo fato de que ele estava se revelando ser diferenciado em muitas áreas. Jorge descobriu também que o pupilo estava assinando uma revista inglesa de literatura e cultura. Ele concluiu que seu aluno estava “invadindo” a seara dos Raposo e isso era inadmissível!

A convivência foi se tornando insuportável; além do ambiente pesado havia questão da tese que o moço teria de terminar mais cedo, pois iria fazer doutorado fora do país e só com esse requisito cumprido ele teria licença.

Jorge lembrava sempre do “pega” que os dois tinham tido quando estavam sós no laboratório. Ele fechou a porta à chave e começou a reclamar do aluno seu desleixo, agressividade e sua inveja. Disse-lhe que tivesse calma que chegaria a ser tão bom, ou melhor, que ele. Isso foi dito aos gritos e retrucado pelo Doca que o chamou de pretensioso e egoísta. Ao fim de uma meia hora de agressões mútuas, Doca começou a chorar e lhe disse que o considerava como um pai e queria ver “tudo isso acabado”. Jorge achou que ele estava certo e terminaram abraçando-se. Ao voltar para casa começou a pensar por que tinha iniciado aquela cena.

Quando Vanessa o chamou com sua voz meiga ele se assustou, mas ela não percebeu:

- Vamos tomar um café bem esperto com aquelas tapiocas que compramos lá embaixo.

- Certo, certo. Café com tapioca é gostoso...

- Depois voltamos. Te deixo no apartamento e vou para o meu escritório, tenho muita coisa para fazer ainda hoje.

Ela tinha o dom de dizer as coisas e fazê-las aceitar sem discussão.

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