Saturday, November 14, 2009

CONTOS DA RIBEIRA 16


O MENINO


O menino acordou cedo, como de costume, pois não gostava de se atrasar para as saídas com o Renato. Hoje eles iriam pegar canário pros lados do Cemitério. O amigo lhe dizia que já tinha pegado muitos por lá com seu alçapão e, se eles levassem dois, seria bem mais proveitosa a saída. O menino tinha ganhado um bem novinho do Zé Costa, caixeiro da bodega do seu pai. (...)


Sentou-se à mesa e esperou que a Rosilda terminasse de por seu café, pois os adultos já tinham tomado o seu e ele, apesar de ter acordado cedo, viu, mais uma vez, que os outros madrugavam. Seu pai já tinha ido para a bodega no Mercado e a Mãe estava na cozinha metida no preparo do doce de caju para mandar para Fortaleza.

Ele gostava das tapiocas que a Rosilda fazia, pois eram bem fininhas e sequinhas e ele abusava da nata, de coalhada, para torná-las ainda mais gostosas; chegava a comer cinco ou seis com café de leite. Tinha ainda queijo de coalho e um pãozinho celestial – ele não dizia esta palavra – feito pelo padeiro da vizinhança; esse pão era bem pequeno, quase do tamanho de um dedo indicador, escurinho, e torradinho – o pão do Pompe. Desses, ele comia uns três ou quatro, agora com manteiga Patrícia, de lata.

A negra Rosilda adorava servi-lo e ficava ao seu lado, em pé, pois era sempre uma oportunidade de falar sobre o que se passava na cidade. Ela sabia que ele gostava de saber das novidades e ela podia, sem susto, expressar seus dotes de alcoviteira e fuxiqueirinha, como todo mundo em casa dizia. Certamente na cidade todos sabiam desses seus dotes.

Nessa manhã ela contou pro menino de treze anos que a Nicinha havia chegado à cidade, vinda pelo trem de Sobral, à noitinha.

- Você não a conhece? Ela é filha do Senhor Pereira. Ela falava escandindo as palavras, o que se notava bem na palavra S-e-n-h-o-r-r-r-r-r.

- Nunca ouvi falar nessa Nicinha. Ela é filha de quem mesmo?

- Do Senhor Pereira e eles moram no Parazinho. Ela é bem bonitinha. Dizem que ela foi fazer uma operação na Santa Casa e lá demorou bem um mês. Não se sabe que operação foi essa...

- Quantos anos ela tem? Perguntou o menino interessado.

- Acho que ela é assim da sua idade. Começando a rir e mostrando sua dentadura perfeita.

O menino logo perdeu o interesse, pois ouviu que o Renato estava chamando por ele da rua, mas disse:

- Rosilda, eu vou sair com o Renato e os meninos, mas quando chegar eu quero saber mais dessa história...

Saiu correndo levando a baladeira e o alçapão novo. Ao chegar ao portão da rua ele viu que o amigo levava o alçapão pendurado ao ombro por uma vara e viu também a baladeira de liga de borracha preta. Renato estava usando o seu inseparável chapéu de palha de carnaúba verde e encarnado.

Logo que o viu, Renato foi dizendo:

- Rapaz porque você não está usando um chapéu? Olha que eu sou preto e uso um o tempo todo e você, “um guardanapo”, vai se queimar todinho. Com isso ele queria chamar a atenção para a pele bem clara do amigo.

- É mesmo eu ainda não tenho um chapéu. Eu acho que não fico bem de chapéu, não.

- Que frescura é essa rapaz? Mais tarde você vai no Mercado, lá na bodega do Haroldo e compra um. Vamo logo!


Em casa, Vicente tomou seu café com um pedaço de pão seco, sobra de ontem. Sem falar com sua mãe, sempre ocupada na cozinha lá atrás ou no quintal dando de comer às galinhas, ele saiu logo e às carreiras pelo aterro. Ele volta rapidinho e grita:

- Mamãe eu vou tomar banho na Barragem com os meninos!

A mãe não o viu mais quando chega na frente da casa, pois saiu em nova carreira desabalada e chegou à estação antes do trem. Todos os dias, nas férias e no inverno, quando o Rio estava cheio, ele fazia essa aventura. Ia para a estação esperar o horário que vinha do Camocim e, escondido atrás de um monte de pedras bem pertinho de onde o trem parava, Vicente dava uma carreirinha e pulava para alcançar o último carro, assim que este passava, sem que o chefe da estação ou qualquer guarda o visse. Ele ia até a ponte onde havia uma parada para o trem tomar água. Essa manobra lhe economizava as energias para as aventuras no Rio com os colegas por quase todo o resto do dia, pois todos estavam de férias no Grupo.

Nesse dia ele tinha combinado com a turma do Barrocão e mais o Renato que morava na Rua Sete e o menino amigo dele que iriam se encontrar na Barragem. Tomariam banho e brincariam de jogar cangapé e depois pulariam da ponte, pois o rio estava muito cheio e era bom pra se pular até da última cruzeta, não tinha perigo nenhum. Ao chegar à Ponte os meninos do Barrocão já estavam tomando banho na Barragem e ele se juntou à turma nas brincadeiras e na busca de ramela que tinha muita mesmo.

A Barragem estava tão cheia que não dava para nadar perto da Ilha do Hugo, se eles quisessem nadar teriam de ir um pouco mais acima, a um dos poços, talvez o Pucu ou o Paraíso; lá as águas eram mais mansas, mesmo com o Rio muito cheio. Mas eles tinham de esperar pelo Renato e pelo menino, pois promessa é dívida.

Quando todo mundo achava que os amigos não viriam mais, pois já estava ficando tarde, os dois apontam lá na curva da estrada que vem da Praça da Matriz. Eles traziam os alçapões suspensos pelas varinhas de marmeleiro nos ombros e quando chegaram perto todos viram que só o Renato tinha um canário. O menino não tivera sucesso na sua caçada, mas certamente o nego rei iria lhe dar o que pegou.

A turma toda tinha ciúmes da amizade entre esses dois. Sem muita razão, pois o Renato, sendo filho da Dona Heráclia, lavadeira da casa do menino há muito tempo, era tido como de casa e os dois eram mesmo muito amigos. Deixa pra lá.

Como os dois estavam vestidos com calções por baixo das calças, foi só tirá-las e cair na água e se integrar às brincadeiras dos outros.


Lá pelo meio dia eles resolveram subir para o tabuado da ponte e pular nas águas revoltas e barrentas do Rio. Todos pularam e quando já estavam bem excitados um deles, parece que o Fernando, aquele menino que mora na Rua Sete perto do Renato e que tinha vindo com a turma do Barrocão, junto com um primo convida todos para pularem das cruzetas e lá do alto mesmo. Só ele próprio Fernando, o Vicente – sempre afoito – e mais um outro menino do Barrocão disseram que pulariam e começam a subir as cruzetas sem antes jogarem um olhar de desafio para os outros. O menino não resiste e, apesar dos apelos do Renato, acompanha os outros.

Forma-se como que uma fila de garotos subindo, um atrás do outro, até chegar à cruzeta apropriada, aquela de onde podiam saltar para o Rio e cair entre as pedras que todos sabiam existir, mas que estavam submersas agora e que eles desafiavam. A fila de garotos se movimenta a medida que cada um pula para as águas revoltas do Rio e, cada um a sua vez, emerge do fundo estampando um sorriso de vitória. O Fernando, o Vicente e o menino do Barrocão nadam para a enorme pedra que fica um pouco fora do centro. Todos agora ficam de olho grudado nas águas à espera do menino que havia pulado por último.

Passa o tempo e o menino não sobe. Talvez um, dois, cinco, dez, minutos. Nada. Não há sinal do menino. Ele não subiu. Todos se entreolham e começam a pular de volta às águas agora com uma tristeza imensa estampada em seus rostos infantis. Mergulham e sobem e nada. Renato que não havia pulado pula agora do tabuado e começa também a procurar o amigo. Nada. Após, talvez, uma hora eles estão mortos de cansados e desesperados. Nada. Somente a certeza que o menino, amigo de todos, desapareceu, é completa.

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