Saturday, November 07, 2009

CONTOS DA RIBEIRA 15


A FESTANÇA

O Secretário veio lá da terra do sol e do caju só para procurar um local adequado para a grande festança que a turma iria promover pela permanência do Nosso Guia no trono. Na verdade quem iria promovê-la eram os Poderes Públicos, todo mundo sabia, entretanto ninguém falava, pois mais uma vez se diga que sobre essas coisas não se fala podendo até pensar, mas só poucos e infelizes lá pensam, daí não havendo problema. (...)


Mas de qualquer forma a turma apoiava o que não era de admirar, pois todos já apoiavam o Homem o tempo todo. Tinham o rabo preso em algum gancho. O Secretário encontrou e alugou logo, com muita antecedência, - outros poderiam passar-lhe à frente, apesar de ainda estarmos em novembro, de 2012 o ano do que infelizmente poderia ser o último do reinado do Dr. Tal - a cobertura do Hotel Des Fleurs na Beira Mar para a grande recepção que os Poderes Públicos dariam. Com mais uma eleição do Nosso Guia, a enésima, todos na Cidade estavam eufóricos. A perspectiva de continuarem a se locupletar pelos próximos quatro anos e de se empanturrar, agora, na janta preparada pelas grandes cozinheiras e doceiras da Cidade, ajudadas por maitres dos melhores restaurantes como o L´e, com sua chef Marie Dobamá, enchia a boca de todos de uma saliva espessa e orgulho desmesurados. Grande também era a expectativa de beber do melhor uísque e do melhor vinho, ambos escolhidos pelo próprio Dr. Tal.

Para o povo rude ele escolheu uísque Jóquei Clube – para lembrar dos anos 1950 quando tudo começou – e vinho Sangue de Boi, este para homenagear sua esposa, a prefeiturável na próxima eleição, que era gaúcha de Pelotas, onde o único filho do casal, o Herdeiro do Trono, tinha nascido. Para si próprio o vinho escolhido era um Romanée Conti da safra de 1960 e o uísque era um Dimple de 15 anos, na falta de um melhor, pois o seu contrabandista preferido não chegara a tempo trazendo a primeira opção que era um Laphroaig de 18 anos. Na noite aprazada Nosso Guia sentou-se, feito um imperador persa e parecendo Alexandre Magno, em sua cadeira de espaldar alto, encimada por um florão que era ver uma coroa imperial e toda forrada com cetim branco imaculado, tendo ao lado sua esposa preciosa, consorte de todas as horas, a espera dos convidados. Estes foram chegando, a princípio os secretários e suas famílias, em carruagens, ou melhor, em carroças que devido à decoração diversa distinguia cada um dos clãs da Cidade. Eles vinham de lá, parecendo até que haviam cronometrado a marcha, pois chegaram minutos antes da abertura dos salões, sendo virtualmente despejados em frente ao hotel onde estavam à espera o Filho do Homem, como todos chamavam e o Primeiro Casal aprovava assim como os secretários mais acachapados de seu Glorioso pai. O secretário das Finanças chegou em carruagem vermelha, brilhando de luxo, trazendo uma pasta 007 que ninguém sabia o que continha, mas todos imaginavam; o Secretário da Agricultura, este chegou em um carro último modelo usando combustível ecológico do tipo animal, mas mal cheiroso; o Secretário da Cultura, que já tinha recebido o bilhete azul, veio carregado por uma carruagem de deslumbrante azul piscina para, apesar de tudo, render tributo a seus patrões, os donos e detentores do eterno saber na região; um carro branco como as nuvens trouxe a Secretária da Educação, sabia-se - ela não fazia mistério -, que sua missão na pasta era a de negar toda a velha, tradicional e pouca história do lugar, pois seu patrão, o Glorioso, só admitia história de sua família e mesmo, somente a dos últimos vinte anos, para trás era tudo irrelevante. Em seguida entram as pessoas que haviam chegado cedo e estavam esperando pelas ordens do Príncipe de Gales – ôps, ato falho! - e seu ajudante o Joaquimzão, - que não tinha nada de “zão”, pois ele era quase um anão e ademais por que esse camarada chegara a essa posição se ele estava antes do “outro lado”? São, então, introduzidas no Grande Salão Oval as professoras e professorinhas dos diversos grupos e escolas, estes, é bom salientar, tinham todos os nomes de parentes e aparentados do Nosso Guia. Não importa. Foi introduzida, Dona Francisca, a Sábia da Cidade, pois ela tinha mania de corrigir todos os documentos que chegavam às suas mãos bem como os livros didáticos usados pelas crianças, alunas de toda a Cidade, isto por mandato da Secretária da Educação; foram admitidas também as demais lentes. Essas outras professoras, como não tinham expressão própria, se é que se pode dizer assim, formaram grupos concêntricos ao redor do trono, pois era mesmo um verdadeiro trono como se estava vendo. Chegou a vez dos profissionais liberais, como os médicos, que quase não os havia na Cidade; dos farmacêuticos, entre esses se destacava o casal nota vinte, dez mais dez, pois não há nota de vinte, só oncinhas e peixinhos, famoso na Cidade por sua rápida ascensão financeira e pela projeção social; dos veterinários, pois havia um bom número desses, dado o enorme mercado para eles uma vez que era grande a quantidade de gatinhos e gatinhas e cãezinhos de estimação o que compensava a falta de rebanhos, pois estes só fazem sujar as ruas; e dos gerentes de bancos e poucos de seus funcionários; chegou a vez dos titulares dos diversos cartórios e dos cartorários, principalmente aqueles que faziam as transcrições de documentos, enfim boa parte da “soit disant” classe média da Cidade. Todos esses formaram mais um círculo em volta do trono de Nosso Guia. Para não alongar muito, vamos encerrar a lista dos entrantes de valor, mas sem antes deixar de citar os empreiteiros amigos que tinham aberto filiais na Cidade para ajudar em sua reconstrução, pois eram eles que estavam fazendo o embelezamento dela, derrubando casarões dos séculos XVII-XIX para construir prédios modernos. Por fim foram admitidas pessoas da plebe rude, era assim que o Dr. Tal se referia ao povo que havia votado nele e sempre o elegia e reelegia e a quem ele não gostava de homenagear de maneira nenhuma.

A festança começou com a distribuição, pelo Nosso Guia, de muito uísque Jockei Clube e vinho Sangue de Boi aos homens e mulheres que estavam organizados em filas ao seu redor. Após receber sua ração de bebida homens e mulheres continuavam organizados assim e se dirigiam para a mesa do bufete para pegar salgadinhos às mancheias, como é o costume nessas festanças, ninguém esperou, mas havia salgadinhos volantes para as personalidades mais importantes. Após uma meia hora as pessoas, já desinibidas, começaram a formar grupinhos de 5 -10 para melhor conversarem, e elas comentavam quase unanimemente a toalete dos membros da Primeira Família – ôps quase que se diz Família Imperial – toda ela mandada fazer nos maiores estilistas da capital. Nosso Guia vestia uma guayabera branca do tipo usado em Cuba feita em linho S120 e impecavelmente engomada. A Primeira Dama portava um longo preto brilhante da lavra de Dona Raimundinha que era da Cidade, mas tinha uma butique na capital, o vestido brilhava intensamente devido aos milhares de lantejoulas e lampadinhas chinesas de Natal que acendiam e apagavam em uma produção do Pedrinho o eletricista mais importante da Cidade. Quando todos estavam quase melados Nosso Guia deu a ordem para o início do jantar, isto é, início da passagem das pessoas pelas mesas com os diversos pratos expostos e postos à disposição dos famélicos. Havia de tudo, saladas de legumes frescos, frutas da estação, arroz brunido e arroz tipo carreteiro e Maria Isabel, feijão de corda com jerimum, feijão preto cheio de carnes, quase uma feijoada, vitelo ao molho de pimenta, carnes nobres com cortes argentinos, filés em diversos molhos, perus de Natal, galinhas secas da Palma, capotes, carne de criação, carne de porco, camarão ao molho de coco, lagosta com creme de mandioquinha, sirigado em manteiga e fines herbes. Era, enfim uma infinidade de pratos que daria para alimentar um grupo de umas mil pessoas que era bem mais do que aquele que rodava em seus círculos, agora uma grande espiral, na cobertura do Hotel Des Fleurs na Beira Mar.

Enquanto o Sangue de Boi e o Jóquei Clube corriam soltos o Príncipe Herdeiro recebeu ordens de seu Querido Pai e Mentor para o início da rodada de doces e docinhos. Estes eram queijadinhas, rosinhas, rosquinhas de açúcar e muito doce de banana e caju, todos produzidos nas futuras instalações das fábricas que já lhe pertenciam e que iriam exportar para a China e outros paises do Bric. Quando a rodada de docinhos terminou Nosso Guia tomou o microfone e fez um discurso de cerca de meia hora quando falou de seus planos para o futuro que incluíam asfaltamento de todas as ruas e das rodovias que chegavam até a Cidade, reconstituição da estrada de ferro, estabelecimento de linhas de metrô de superfície ligando os diversos bairros, abertura do aeroporto com um heliporto anexo e muitas outras obras. Quando ele estava enumerando todos esses futuros benefícios de seu próximo mandato o Príncipe de Gales aproximou-se e cochichou em seu ouvido e foi aí que o Dr. Tal acrescentou ao grande número de obras a climatização do estádio de futebol local com a instalação de um poderoso sistema de ar condicionado central. Quando ele terminou ouviu-se uma salva de palmas muito grande que foi interrompida a seu pedido quando então ele comunicou que todas essas obras seriam financiadas pela grande indústria de lamparinas de folhas de flandres que a iniciativa privada em associação com o poder público estava para inaugurar no bairro da Várzea. Nessa altura houve um ruído vindo de alguns setores insatisfeitos que reclamavam da falta de uma banda de forró que lhes permitisse arrastar os pés e balançar os quadris; infelizmente Nosso Guia, como não gostasse de sambar, não tinha permitido a contratação de uma banda. Após mais palmas Nosso Guia pediu a todos que debandassem em silêncio e tomassem suas carruagens coloridas para voltar à Cidade e retomar seus múltiplos afazeres público-privados.



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