Saturday, May 22, 2010

CONTOS DA RIBEIRA 34


EU SOU UM MANTO E MEU NOME É NEGRO


Em tempos idos quando o viajante chegava pela estrada da Várzea, logo após subir o morro agora chamado “da Brasília”, e olhar pros lados do norte ele via toda a Ribeira em seu esplendor ocupando a grande depressão caracteristicamente ponteada por grandes monólitos. (...)


É certo que ele a via debaixo de um manto diáfano de névoa branca no tempo do inverno chuvoso e de reverberações do enorme calor no alto verão seco. Era uma visão que lhe enchia de encanto e satisfação os olhos. À medida que caminhava em direção à cidade o manto se alevantava à sua passagem, primeiro de sobre as dezenas de casebres de taipa que ponteavam quase todo o espaço que vai da Pedra do Santo até as primeiras ruas que levam ao centro. Só depois é que o manto se despregava dos prédios mais altos como a Igreja, a Casa da Câmara, a Casa-grande, o Grupo e também a Ponte e a Pedra Grande até que o viajante se via encoberto por ele que parecia ser guardião da paz e da tranquilidade na pequena comunidade de típicos remanescentes indígenas. Ao chegar ao centro, no Mercado, ele era recebido por uma gente que, se não alegre, era pelo menos pacata e comunicativa. Era assim bem antes da terrível Guerra que destruiu a Europa e quase levou o País a também derramar seu sangue por lá. Apesar de muitos de seus filhos haverem dado suas vidas e terem deixado profundas saudades os modos de viver na Ribeira não se alteraram profundamente devido ao conflito. Vivia-se pacatamente: de casa para o trabalho e do trabalho para a casa, isto é, os que os tinham. Mesmo os que nunca tiveram nem casa nem trabalho, com seu espírito consolado desde os tempos em que foram dobrados viviam em paz consigo mesmo, viviam em paz com a comunidade. Não que isso fosse sinal de acarneiramento ou conformação, mas a tradição pacata da Ribeira não era quebrada facilmente. Entretanto a desídia de alguns vultos de suposta riqueza, importância e influência principiou, utilizando poderosos tentáculos de toda sorte, a envolver muitos pacatos cidadãos em processos de forte natureza corruptora. Foi assim que se multiplicaram os casos de furto, de roubo, desvio, pirataria, rapinagem, roubalheira, assaltos, usurpação, falsificação, contrabando, e mais uma enorme gama de atividades ardilosas. Todas elas patrocinadas por grupelhos sob a liderança e ordem de reconhecidos malfeitores do bem público.

Aqueles habitantes que davam as boas vindas ao viajante eram os que ainda se mantinham a distância desses movimentos e atividades que certamente levariam a cidade ao definhamento. Ele, necessariamente, seria posto a par da imensa variedade de crimes que se cometiam na cidade e sobre a origem dos quais todos sabiam de onde as diretrizes partiam. Assim é que entre esses relatos encontrava-se aquele que falava sobre o enorme contrabando que se processava quase que a vista de todos. Contrabando de automóveis vindos da América do Norte e que se fazia através de estradas e fazendas da Ribeira. A polícia, que nesse tempo chamavam meganha, chegou a fechar o cerco a uma casa à margem da estrada que vem do Lago Grande, mas não efetuou nenhuma prisão. O deputado Jorge Elias, de dentro da casa, aos gritos, convenceu o comandante da patrulha que tudo estava correto e que o automóvel novinho que eles estavam vendo estacionado embaixo da latada de galhos e folhas secas tinha todos os registros em ordem. Logo, logo o Sargento Alves foi embora com sua tropa e não se falou mais nisso. Mal sabe ele, ou melhor, bem sabe ele, que escondidos nos matos próximos estava um grande número de sedans Chevrolet modelo 1949, novinhos em folha e todos da mesma cor. Foi só a noite chegar novamente que os carros começaram a sair no rumo da Parnaíba e Terezina levados por motoristas contratados a peso de ouro. O número de carros contrabandeados chegava a 50 e todos eles eram de propriedade de um consórcio no qual o Velho e o Novo tinham as maiores participações e Jorge Elias era o “mão forte”. Não foi dessa vez que a riqueza do Novo passou a do Velho, mas ele ficou perto de ser o homem mais rico da Ribeira.

Outro caso que o viajante ouviu logo ao chegar foi aquele da exportação de cera de carnaúba derretida com caulim. A exportação da maior riqueza da cidade e do município, a cera de carnaúba, era feita por poucos comerciantes. Eles se contentavam com os lucros pequenos e sempre variáveis dadas as oscilações do mercado internacional. Uns dois ou três almejavam enriquecer no mais curto espaço de tempo. A esses estava aberta a via do descaminho, do contrabando e da falsificação. Os compradores de Liverpool logo descobriram a falcatrua e acionaram o Governo brasileiro que chegou a tomar providências que, como sempre, aberto um rigoroso inquérito, deram em nada. Nessa ocasião o Velho ainda lucrou mais do que o Novo.

A Biblioteca Pública da Ribeira era conhecida como um padrão em toda a região. Ela comportava pra mais de 3000 volumes compreendendo títulos os mais diversos, desde os clássicos portugueses e brasileiros, muita literatura francesa e inglesa, livros técnicos e muitos dedicados a aprendizagem escolar. Pois bem, ela também foi palco e é exemplo de fatos desabonadores, pois foi tomada de assalto pelas tropas do Velho, e literalmente destruída. Todos viram quando essas tropas entraram no antigo prédio que serviu de residência a um dos coronéis locais e carregaram não se conseguiu saber para onde, a maioria dos livros que serviam de lastro para o aprendizado, cultura e lazer de crianças e adultos. Desconfiam muitos que os livros foram vendidos para uma fábrica de papel higiênico de Caiçaras. Há informações de que cerca de 2000 volumes desapareceram assim, de um total de 3000, que era o antigo acervo da Biblioteca criada por Antônio Augusto.

Ao longo dos anos esses fatos e acontecimentos revoltantes foram sendo observados pela comunidade da Ribeira a qual não tomou providências enérgicas, como negar ao Velho e ao Novo os poderes autocráticos que eles paulatinamente foram acumulando e denunciar aos Poderes Públicos os fatos desabonadores e criminosos praticados pelos dois e seus comparsas. O que aconteceu então foi que o Velho e o Novo tomaram as rédeas da cidade e, daí em diante todos presenciaram horrorizados os desmandos cada vez mais frequentes e acentuados. As bridas que ao Novo coube agora comandar provocaram uma profunda transformação no espírito ordeiro e pacato da cidade.

O que ocorreu em seguida foi um exagerado aumento no número de postos de trabalho das repartições sob o rígido comando do Novo. Foi tão grande o número de pessoas admitidas para todos os tipos de funções, desde professores primários, secundários, de nível superior, gestores, almoxarifes, secretários e secretárias, motoristas, guardadores de uísque, cozinheiras e cozinheiros, servidores de café e de água, serventes, guardas, vigilantes, redatores, repórteres e jornalistas e mais toda uma gama adicional de funcionários que servem ou não a uma administração.

Foi por essa época que eu comecei a aparecer sobre a Ribeira. Fui chegando devagar e logo lancei alguns tentáculos, vou chamar assim uma espécie de pseudópode característica dos de minha raça. Essas extensões do meu corpo negro principiaram a cobrir as regiões de maior riqueza da Ribeira, pois era aí que moravam muitos dos corresponsáveis pelas misérias que se assentavam sobre a pobre cidade. Eu notei e o que também mais chamou a atenção de alguns poucos habitantes foi que o Novo, a partir de seu acesso às estruturas administrativas da cidade, passou a pagar os salários dos funcionários admitidos e dos já existentes na base de “50 a 50”. Isso significava que o funcionário recebia sem atraso e assinava a folha de pagamento, mas recebia no caixa, das mãos da companheira do Novo, somente a metade do que estipulava um contrato guardado a sete chaves. Com esse reforço de seu caixa o Novo começou a implantar o culto desenvolvido pelo pastor da igreja recém-fundada e da qual ele era o principal sacerdote. Essa era a Igreja Sincrética do Reino Superior conhecida como ISRS. O culto foi implantado em toda a cidade e também nos distritos do município e, como era muito simples, precisando somente de um prédio, geralmente doado por um coronel amigo, os custos eram mínimos. O lucro, no entanto era grande e era acrescentado aos enormes ganhos do próprio Novo. Na cidade, aí sim, foram construídos inúmeros prédios e convocados diversos jovens para ministrar os cultos semanais que passaram a competir com os da Igreja Católica. A cidade foi coberta literalmente por uma infinidade de símbolos que traziam as quatro letras representativas da nova igreja, ISRS; havia inscrições em tinta nos muros, desenhadas em pedras portuguesas nas calçadas, em enormes mastros em todas as esquinas de importância e nos trevos rodoviários que davam entrada na cidade. Esta foi tomada de um fervor pela nova religião que era só ver.

O Padre da cidade era parente do Velho e, a princípio, não se incomodou com essas iniciativas religiosas do Novo. Somente após alguns anos da implantação da nova seita foi que ele viu seu erro. Aí já era tarde. Por mais que ele se arrependesse de ter aceitado sua indicação intermediada pelo Velho e conseguida com muita artimanha junto ao Bispo já não havia jeito, ele era tido como participante do grupo. Ele lembra do jovem padre de má fama que o Velho conseguiu afastar para pô-lo em seu lugar. Essas coisas ninguém prova, mas o povo ingênuo acreditou que a centena de preservativos masculinos que o Velho mandou espalhar pela nave da Igreja, puseram até no altar-mor, era prova suficiente de que o padre era um devasso. Mas, o que se há de fazer? Ele foi mandado embora pras Alagoas e lá ficou.

A implantação das ações repressoras das atividades culturais foi um dos passos mais brilhantes que o Novo tomou. Ele tradicionalmente era avesso a leituras de qualquer espécie, como diziam pessoas do povo, ele só gostava de ler livros de cheques e outros livros lhe davam sono logo na primeira página. Nisso ele se parecia com seu chefe supremo. A justeza dessas observações não me compete averiguar. O que é certo é que, como continuação da destruição da Biblioteca Pública nos primórdios da ação do Velho houve um ataque cerrado a programas desenvolvidos por pessoas dedicadas à preservação dos valores culturais locais como as programações do Bumba-meu-boi, Pastorinhas, Leroá, Marujos e mais uma porção de outros. Nesta linha as iniciativas tomadas por artesãos locais para o estabelecimento de escolas onde se transmitissem conhecimentos de artes populares como o feitio dos mais diferentes tipos de rendas e bordados, carpintaria, cerâmica e outras foram também desestimuladas.

Por outro lado iniciativas que vistas por observadores ligeiros poderiam ser tomadas como de interesse da comunidade, nada mais eram do que a destruição, ainda, de valores tradicionais; assim eu me refiro à demolição de prédios antigos e utilização dos terrenos baratos para edificações destinadas a se obter lucro imediato. Centenas de anos de construção de uma arquitetura particular na Ribeira foram simplesmente jogados de lado, ou melhor, abaixo.

Não satisfeito com a completa dominação da cidade o Novo decidiu promover a criação de um ente feito à sua imagem. Ele se dedicou por muito tempo à criação do que passou a ser conhecido como o Mais Novo. O material utilizado foi um barro de má qualidade e que não queimava direito, mesmo no melhor forno como o do Edilson. De qualquer modo essa figura esquálida depois de completamente formada passou a ser treinada para substituir o Novo cujo tempo de validade estava chegando ao fim. O Mais Novo, no entanto, apesar das benesses patrocinadas por peixinhos e oncinhas, não demonstrou nenhuma aptidão para dar continuidade às atividades do seu criador. Este teve de desprezar sua criação e se valer de um grande número de asseclas que continuariam seus planos de tornar mais ainda escrava a população da Ribeira.

O que de pior aconteceu e eu pude constatar como observador privilegiado foi a completa dominação apaixonada pelo Novo do povo da Ribeira ao longo dos anos. As mentes das pessoas foram sugadas e substituídas por mentes totalmente deturpadas e que só respondiam a estímulos vindos da parte do Novo. Estes estímulos sempre envolviam favores que eram traduzidos em símbolos zoológicos. Nada mais se esperava da população, pois ela estava totalmente submissa aos desejos do novo Dillinger.

Logo após a desistência de levar o Mais Novo ao comando eu completei de negro a cobertura da cidade; ao lançar meus enormes pseudópodes as pessoas da pobre cidade não reagiam, pois imaginavam que isso pudesse ser uma proteção contra os poderes malignos do Novo. Ao descobrir que eu estava de certo modo obstaculizando seus planos de dominação integral das mentes e dos territórios em que se derramava a Ribeira ele resolveu se desfazer destes últimos, pois as mentes ele já as havia destruído. Em um grande leilão feito na Praça do Mercado foram postos em hasta pública e arrematados a maioria dos distritos do município que, a partir daí, se tornaram independentes, livres do poder maligno do Novo e de seus asseclas. Eles passaram a ser cobertos pelo manto diáfano de névoa branca antigo conhecido da Ribeira. Em contrapartida, eu fiquei a cobrir os poucos logradouros que sobraram do leilão: a Rua do Azevedo, a Praça da Matriz, a Praça do Mercado e umas poucas mais ao redor dessas.




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