Sunday, January 17, 2010

CONTOS DA RIBEIRA 23


O MESTRE CONTA UMA HISTÓRIA


As mesas e cadeiras dos bares e churrascarias bordavam monotonamente as calçadas da avenida. Naquele princípio de noite quase que não havia mais vagas, mas a turma tinha um garçom amigo na Churrascaria Bem Querer. O Miguel arranjou logo uma mesa grande, bem próximo ao passeio, quando viu que o Mestre fazia parte da turma. (...)


Sentados em uma das mesas da churrascaria supunha-se que eles já estivessem cansados do churrasco mal passado e de beber tanta cerveja; felizmente esta era sempre gelada. O Mestre, como todos já o chamavam a esta altura de sua vida, comia tranqüilo a biquara frita que Miguel tinha mandado preparar no capricho. Ele tinha ódio de churrasco, pois sempre achava que lhe fazia mal, mas não as muitas cervejas que tomava acompanhando seus discípulos, certamente já cansados dele e de suas piadas bobas. É bom que se diga que, para ele, a recíproca era verdadeira. O Mestre gostava de agradar à sua assistência, principalmente às Marionetes que é como todos e elas também, chamavam as estudantes do grupo. Isto foi inventado por uma delas que, saliente e achando que ele prestava atenção a ela disse, na frente de todos, no laboratório, que ela era a preferida. Não se sabe que tipo de preferência seria essa; talvez somente ela tivesse alguma idéia. A conversa corria animada e a noitada prometia entrar pela madrugada adentro, pois o ventinho – não era brisa - vindo do rio amenizava o brutal calor que havia feito durante o dia. Era janeiro e o verão prometia ser violento. Esse instante ameno e relaxante, entre as agruras de viver na cidade hostil dava a todos uma boa oportunidade para cimentar mais ainda a camaradagem ao contarem casos pessoais e outros passados com amigos e colegas e dos quais alguns já tinham tido conhecimento, isto é, a famosa fofoca. Ao contar a história do orador que interrompeu palestra dizendo que seu “bridge” frouxo poderia cair a qualquer instante, Ricardinho, que já estava escrevendo sua tese de doutoramento depois de ter ultrapassado todos os prazos legais, trouxe a lembrança diversas outras, verdadeiras ou não, colecionadas pelo Abel em um arquivo de seu micro. Após o próprio Ricardinho ter contado mais algumas do mesmo nível todos se animam e começam a rir alto chamando a atenção das mesas vizinhas; boa parte dessas histórias tinha origem no gabinete do Mestre e corria à boca pequena que ele as inventava, mas ninguém ainda ousara testa-lo. Nessa noite, talvez já estimulados pela cerveja e pelo ventinho ribeirinho, Abel resolve arriscar seu pouco prestígio e fazer a pergunta que todos gostariam de já ter feito há tempo: “Mestre, essas histórias são mesmo verdadeiras ou criadas por sua imaginação fértil?” Ele encara o estudante, que já passara do tempo de apresentar “resultados excitantes”, e responde: “Abel você sabe que eu sempre digo que de tudo aquilo que eu falo somente dez por cento corresponde à verdade sendo os outros noventa por cento, não mentira grosseira, mas ‘fatos inventados e elaborados’. Sendo assim você, aliás, vocês todos, podem escolher entre essas duas alternativas e jogar. Ganha quem acertar e as chances são para...” Houve uma risadaria geral e mais cerveja foi pedida ao Miguel. Com os copos reabastecidos de cerveja e mais o pedido de uma rodada a mais de churrasquinhos e, mais uma biquara frita para o Mestre, a animação continua. O próprio Ricardinho, secundado por Maira, provoca o Mestre e os dois pedem-lhe para contar mais alguma historia, mas só serviria se fosse uma inédita, que ninguém do grupo conhecesse. Ele fita cada um deles, como se estivesse dando aula ou fazendo um discurso, sinal que sua retórica ainda sobrevivia, ele diz por fim: “Eu tenho uma historinha nova, mas não sei se ela é engraçada ou se é trágica, ao final vocês decidem se ela pode fazer parte da coleção do Abel”. Todos concordam e Mário – era este o nome do Mestre – principia a contar sua história, verdadeira ou não isso quem decidiria seria a sua assistência. O Mestre principiou por dizer que o Velho Francisco, seu conhecido e amigo de longas datas, morava em uma casa simples, mas muito agradável às margens do Açude da Pedra. Eles tinham três filhos, duas meninas e um rapazinho de quinze anos. Das meninas, a mais velha tinha vinte e dois e a segunda dezenove anos. Todos estudaram no colégio da Várzea, mas a mais velha tinha abandonado os estudos, pois segundo ela sabia mais do que os professores. Essa atitude de Cristina era reflexo de sua rebeldia natural que ninguém sabe de onde vinha, ou melhor, todos diziam que fosse herança de seu pai. Cristina começou a trabalhar bem cedo em uma loja de aviamentos para bordadeiras cujo nível de vendas tinha caído muito e ela os fez subir a um patamar bem mais elevado. Tudo isso porque a moça tinha um grande sucesso entre as mulheres e um enorme entre os rapazes. Estes não compravam coisa alguma do que Cristina vendia, mas sempre passavam na loja para um dedo de prosa bem intencionada. Os moços atrapalhavam as vendas, pois inibiam a entrada das freguesas que procuravam por rendas, bicos e outros artigos menos concorridos. O patrão, um senhor de seus sessenta anos, começou a reclamar, mas ela, teimosa como o que, não tomava a iniciativa de falar para seus admiradores que eles deveriam ser mais comedidos nas visitas. O resultado é que o patrão a despediu e não lhe pagou mais que uma pequena gratificação adicional ao salário que ela recebia. Sua conhecida rebeldia não se manifestou nesse episódio, talvez porque ela apreciasse o patrão mais do que o normal e não quisesse chateá-lo. Ela teve de concordar com seu pai que teria de mudar de ares. Cristina aceitou o convite de sua madrinha para passar uma temporada com ela na capital, onde estudaria e ajudaria em algumas atividades domésticas. Ela foi matriculada em um colégio particular para terminar o segundo grau. Felizmente o colégio era perto e por isso ela não precisava pedir carona ao padrinho que saia para o trabalho logo depois do café servido por ela mesma, - a Detinha, a cozinheira, só chegava depois das nove -, para o casal e as duas crianças, o Paulo Filho e o Ronaldo. Tendo deixado sua família longe ela passou a considerar a família de sua madrinha quase que como a sua própria; era de uma grande dedicação procurando corresponder à confiança que o casal depositava nela e fazia tudo para agradar aos dois meninos e eles passaram a gostar dela como se fosse sua irmã. Sua madrinha nem se conta, pois desde novinha lá no Açude elas se deram muito bem. O relacionamento da afilhada com seu padrinho, Dr. Paulo, era meio estranho: ele nunca olhava para ela diretamente, talvez para não mirar sua própria imagem nos grandes olhos negros da afilhada. Tendo logo descoberto esse como que mal estar do padrinho, ao invés de esclarecer ou mesmo evitar, a menina, pois não era mais do que uma, passou a fita-lo com seu olhar magnético que era conhecido de todos. Cristina imaginava que, com essa atitude, poderia ser amiga dele e ele não a evitaria como havia acontecido com aquele coroa lá na Várzea no ano passado. Passaram-se as semanas e o padrinho já havia se acostumado com a afilhada e seu olhar de visgo. Ela, acostumada a usá-lo – o olhar – se deleitava com os resultados. Em um fim de semana em que sua madrinha foi com os meninos para um sítio de parentes na serra e Dr. Paulo ficou a fim de terminar um importante trabalho, um pedido do Deputado Ricardo Pinto, Cristina ficou para preparar-lhe as refeições e as bebidinhas; era sabido que ele não gostava de comer fora, só comida feita em casa e, agora com ela em casa, sempre feita por suas mãos; ela também lhe preparava o cappucino e o uísque sour, suas bebidas preferidas. Após o jantar Cristina preparou o cappucino e o uísque e foi lavar os pratos. Após o que ela foi ver televisão em seu quarto e se preparar para dormir sem antes fazer anotações em seu diário. Lá pelas dez horas ela apagou a luz e viu que o padrinho ainda estava trabalhando em seu gabinete. Logo depois ela ouviu a pisada inconfundível de seus mocassins e, olhando para sua porta, viu a figura dele. Dr. Paulo não falou, mas, procurava com olhos de lobo faminto as sombras salientes de seus mamilos rosa. O Mestre fez então, a pausa anunciada e ficou aguardando alguém falar alguma coisa. Todos à volta da mesa haviam, de há muito, parado de comer, mas continuavam a sorver enormes quantidades de cerveja. Ricardinho perguntou: “Mestre, e aí?” Ele respondeu: “Vocês vão pensar nessa pequena história e propor, durante a semana, uma seqüência para ela. Na próxima sexta-feira vamos ouvir a melhor delas aqui na churrascaria, ao redor dessa mesma mesa.” Todos bateram palmas e continuaram a noitada que, aliás, já era quase manhã. Fza março 2009

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