Saturday, October 10, 2009

CONTOS DA RIBEIRA 12


A CHEGADA D´ELLA

São seis horas e ele ouve um carro parar em frente e logo seguem dois toques breves de buzina. Ele sabe quem está lá e dá uma ordem com sua voz que está bem fraca:

- Ô Maria Inês vai lá fora e diz que eu vou já. Que estou terminando umas coisas e vou num minuto. (...)


A empregada, um misto de governanta e enfermeira olha pra ele e hesita em cumprir a ordem. Jorge insiste e ela vai intrigada. Quando volta entra no escritório e diz que a pessoa que o procurava tinha ido embora. Ela aproveita para dar-lhe um copo de suco de caju diet sem gelo que é como ele gosta, ou melhor, suporta. Maria Inês não traz mais as frutas cortadinhas com mel de que ele gostava tanto. A dieta do Patrão, como ela o chama, está restrita a sucos e de vez em quando uma barrinha de cereais, também de baixas calorias. Ela não sabe mais o que fazer, pois ele está emagrecendo a olhos vistos, com olheiras e, para piorar não se cuida mais. Ainda há dois dias ela transmitiu pra ele o telefonema que atendeu:

- Patrão a Marcinha do salão ligou e disse que estava-lhe esperando.

Ele tirou o olhar da tela do micro e balançou a cabeça em sinal de negação.

Maria Inês mantinha seus filhos informados de tudo. Eles vinham visitar o pai, mas nada, o velho era teimoso e não os atendia. Ele parece ter desistido de tudo e só se alegrava um pouco quando os netos apareciam. Mesmo assim ele só suportava a visita de um de cada vez.

Jorge quer por força fugir d´Ella, mas está parecendo que é muito difícil. Quem ele acha que poderia dar-lhe apoio nessa fuga está se afastando, talvez as pessoas já estejam enjoadas dos apelos silenciosos que ele faz. Pudera Jorge não verbaliza esses pedidos e, como é normal, as pessoas não lhe prestam atenção. Para um camarada de oitenta anos vividos sem nenhum sobressalto ninguém desconfia que ele precise de ajuda. Talvez uma ou outra. Talvez. Mesmo aquela bela figura que o acompanha desde que a viu pela primeira vez na Malhada naquela tarde ensolarada e quente, parece ter-lhe abandonado.

Ele resolve viajar. Sempre que Jorge vai passar alguns dias na Malhada ele imagina que resulte em alguma coisa boa. Ele espera ver sua “bela figura”, como ele se acostumou a pensar na menina entrevista na tarde ensolarada. Mas, nem sempre é agradável ir na Malhada. Ao contrário ele tem muitas contrariedades, dissabores. É uma merda mesmo. Já fazia anos que ele não dirigia para lá, pois tinha receio de não terminar a viagem e por isso chamava o Pereira para suas viagens; às vezes este lhe levava até o interior onde visitava parentes ou o suposto túmulo de seu avô, lá no Pé da Serra. Logo que o motorista chegou eles viajaram, pois Jorge estava nervoso, impaciente, achando que, dessa vez, alguma coisa de bom lhe aconteceria na Malhada. Quando chegaram a Irauçuba ele nota que havia esquecido de pedir ao Dr. Airton uma receita para seu remédio, sem o qual não se afastava mais de um instante; se lhe faltasse teria que voltar, pois o Tropital só se vende com receita médica e obter uma não seria coisa trivial. Enfim, ele foi arriscando; se ele visse que iria precisar do remédio ele voltaria e, em quatro horas estaria de volta à civilização. Na Malhada, na casa de sua irmã e cunhado, ele esperava se alimentar melhor e pegar uns quilos. Com isso talvez enganasse a Ella que o vinha assediando com mais frequência ultimamente. E sempre havia o consolo de ver a “bela figura”. Mas ele a via constantemente, como agora, projetada nas copas das árvores que passavam enquanto o carro seguia velozmente.

Chegaram à Malhada no domingo à tarde Jorge ficou conversando com a irmã e o cunhado até bem dentro da noite, comendo ostras frescas acompanhadas de um bom vinho, sempre levado por ele, pois o casal gostava bastante, tanto do vinho e ostras como, talvez principalmente, da conversa com a qual todos renovavam os laços de amizade que sempre tiveram. Os três já eram bem entrados em idade e tinham tido as mais diversas experiências, principalmente as familiares, estas sempre desgastantes; discuti-las e aprecia-las sempre foi objeto dessas conversas no Grande Casarão herdado de seus avós.

Jorge decide, ainda no domingo, viajar até ao Pé da Serra visitar alguns parentes para uma boa prosa; muitos dos tios de seu pai ainda moram lá, apesar das inúmeras dificuldades que tinham para manter as pequenas nesgas de terra herdadas de seus pais e avós. Ele sabe que o Pereira não pode levá-lo até lá, ademais seu carro não pode penetrar as estradas de barro sempre esburacadas e tortuosas; seu cunhado telefona para o Martinho e combinam a viagem para cedo na manhã. Este é um motorista eficiente e prestativo que conhece não somente as estradas, mas todo o mundo pras bandas da Serra. Quando chegam à casa do Velho Inácio, na Furna da Onça, Jorge está muito cansado e perturbado; todos na casa notam isso e a um aviso do Martinho preparam uma rede branca, bem limpa e a armam na varanda e levam-no para ela. Jorge consegue dormir um pouco não sem antes ter mirado a “bela figura” que o acompanha sempre projetada na parede branca da varanda. Ele se anima quando as primas que rodeiam o avô o acordam para o almoço. Ele não deixa de apreciar a juventude e beleza dessas primas, distantes herdeiras das velhas tradições familiares e tribais e que também lhe dão atenção especial. A conversa é agradável e, pelas três horas é servido um café gordo, mas rápido, pois os visitantes têm de voltar para a Malhada para não chegar com noite alta.

Martinho se apressa na direção da D20 e tomam logo caminho, pois eles têm de subir um pouco a serra e entrar pelo Socavão do Sancho para depois pegar a estrada que os levará até a cidade. Ao chegar ao Socavão que traz o nome de um antepassado Jorge sente uma necessidade estranha de descer e procurar alguma coisa que ele mesmo não sabe o que é. Encabulado pede a Martinho que pare o carro diante de uma casa em ruínas bem dentro do socavão e desce.

A casa está abandonada, caindo aos pedaços, suja, imunda. Jorge entra e se depara com salas e quartos em abandono completo. Um dos quartos tem uma porta encimada por uma placa, um frontão, com os dizeres “Bem-querer”. É um quarto de crianças com uma penteadeira tendo um espelho grande, vertical, todo enferrujado. Ao aproximar-se do mesmo ele vê a imagem de uma menina – é quase uma menina – de olhos redondos, grandes, aquela “bela figura” de sempre, que lhe sorri e lhe aponta para seu cabelo curto e negro amarrado em um coque. Jorge quer abraçar a figura, mas encontra a lâmina do espelho que se desfaz em inúmeros pedaços. Somente nesse instante ele sente a presença definitiva d´Ella, mas aí não havia como evitar seu chamado. Ele também não queria mais.

Martinho vem correndo ao ouvir o som de vidros quebrados e encontra Jorge abraçado a um pedaço do espelho.

5/6 jan 2009

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