Saturday, September 12, 2009

CONTOS DA RIBEIRA 8


A CASINHA

Comprar peixe na Prainha era algo que ele fazia com prazer, gostava muito e nessa manhã tomou seu carro e saiu para lá. Era por atitudes como essa que se dizia ser ele rico, imaginem viajar cinqüenta quilômetros só para comprar peixe... Mas ele tinha outras razões, pois além de comprar peixe ele queria ver a praia, sentar em um daqueles bancos da Beira Mar, só para espairecer, pois estava com a cabeça em burburinho – será que era a falta do remédio? Ele havia esquecido o frasco de Tropital em casa, na capital e, pior, não tinha receita para comprar um novo vidro na Prainha, mesmo se o encontrasse em alguma farmácia. (...)


continuação do texto/postagem


Ele tinha alguns motivos para querer sair da Várzea. Ele queria esquecer do caso daquela senhora que o incomodava na Capital e que lhe telefonava quase todos os dias. Ainda agora, ontem mesmo, ela havia ligado para contar que o marido, um engenheiro de certo renome, havia jogado o carro com todos, inclusive ela, num barranco da estrada quando iam para Beberibe. Ela pedia socorro a ele, pois achava que o Otávio pretendia deixá-la e ela não queria que isso acontecesse. Ele se perguntava o que ele tinha a ver com essa história. Havia outro motivo também: ele estava cansado de esperar pela Dama e decidiu, então que precisava pensar mais nesse caso. Foi para a Prainha e nem comprou peixe, mas almoçou uma peixada, regada a cerveja no restaurante do João da Mata e depois ficou rodando sozinho na cidade sem destino. Ele não tirava o pensamento da menina – quantos anos ela tinha mesmo? Tão criança e já trabalhava; tinha sido assim com ele no começo de sua vida. Aliás, tinha de ser assim com quem queria ser alguém na vida. Só que no seu caso ele havia trabalhado em um Armazém de gêneros de seu Tio desde os quinze anos. O velho explorava crianças carentes. Ele não podia ser classificado como tal, mas que precisava do emprego era certo. O armazém não era exatamente de seu Tio, ele era somente o gerente. Como era costume, antigamente, as pessoas precisavam ter um parente com certa influência para conseguir uma colocação, um emprego. Esse seu parente por sua vez, quando mais jovem, tinha sido colocado por um parente distante, mas bondoso, quase dono do Armazém. O que é certo é que ele começou a ganhar algum dinheirinho sendo sua função atender a freguesia no balcão e por isso os colegas do colégio o apelidaram de “O Bodegueiro”. O negócio era pequeno, uma bodega para os invejosos como os colegas e sua madrinha, a que ficou na Várzea, mas tinha muitos clientes e de toda versidade. Tinha um capitalista, só podia ser um, pois trajava branco, – linho S120 brilhoso -, fumava charutos cubanos caros, de antes da era Castro, e usava um chapéu Panamá quando ninguém mais os usava. O Sr. Santino chegou a dono de banco, e foi então que eles se entenderam melhor. Apesar de sua fama de mulherengo, ele não era do tipo que a maioria das pessoas chama de “velho enxerido”, mas não saia da “Oitenta” e tinha um cheiro de velho que mal disfarçava com porções fartas de “Leite de Colônia do Dr. Studart”... Certo dia o Sr. Santino o chamou para trabalhar com ele no seu Banco, instalado em um prédio acanhado na Praça dos Leões, ao lado da Igreja do Rosário. “O Bancário” só não chegou a ser gerente porque pediu as contas ao fim de cinco anos de trabalho, pois resolveu estudar seriamente, queria ser alguém na vida, talvez um cientista, se tudo desse certo. Como o seu dinheiro era curto para isso, ele teve de pedir ajuda ao pai que passava por rico, mas não era só alguns da família sabiam e ele não era desses; o velho fazia tudo o que seu único filho queria. Ele guardava boa parte do salário do Banco como economia para o futuro, mas estas mal deram para sapatos decentes, quando precisou. Conseguiu convencer o velho e no final seu Pai o enviou para São Paulo onde estudou por muitos anos, formou-se, fez concurso para a USP – ele era Físico. Ninguém na Várzea sabia o que era isso, ou melhor, o que ele fazia, melhor ainda se ele existia. O casamento do “Físico” – há muito tempo que não o chamavam de “Bodegueiro” ou “Bancário”- com uma jovem paulistana resultou de sua amizade com seu professor e orientador Dr. Manuel Vargas, um verdadeiro polígrafo, reconhecido internacionalmente. Ele casou com a filha do Dr. Vargas e o casal teve dois filhos criados pela esposa, neta de suíços, por parte da mãe. No âmbito familiar ele só cumpria suas obrigações matrimoniais e olhem lá! Ele só se preocupava em cuidar de sua profissão: pesquisa e aula, aula e pesquisa. Era sócio de muitas sociedades de Física e foi eleito para diversas academias e recebeu láureas importantes... Passaram-se os anos, ele aposentou-se e não quis mais trabalhar na Universidade ou mesmo em Física, a princípio muito querida; exercer sua profissão começou a entediar-lhe como um prenúncio de coisa pior. Daí encasquetou de abandonar tudo, família, profissão e voltar para sua terra, mas para fazer o que? O resultado de muito pensar e de causar muito desgosto em casa e no trabalho, foi sua associação com um amigo de infância em uma iniciativa para cuidar de crianças abandonadas da Várzea, ora ele que nunca cuidou de seus próprios filhos! “O varzeano de amanhã”, era esse o nome da instituição que não tinha registro, nem CPF, nem CNPJ, e funcionava em uma sala acanhada na antiga casa dos pais desse seu amigo e da qual ele era o chefe. A instituição, pois era uma verdadeira na cidade, tornou-se popular e era conhecida como OVA. De qualquer modo os dois amigos, no começo da nova atividade, tinham muito dinheiro para tocar a OVA; muito desse dinheiro era de doações de seus dois filhos que moravam nos Estados Unidos, professores de universidades importantes, acho que de Yale ou do MIT. Agora, entretanto, estava tudo despencando, pois ele vez por outra adoecia de uma doença que era como que uma praga na sua família. Seu pai, seu avô, seu bisavô e até o padre judeu novo que deu início à família, todos foram afetados por ela. Todos esses aí morreram da tal doença, dela não, mas de fome, pois não comiam. Era por isso que ele gostava e se obrigava a comer. Todos diziam que não tinha nada a ver uma coisa com a outra, mas o resultado é que ele sempre tinha sobrepeso, era gordinho. Fazia regime, mas não adiantava muito. Ele adorava comidas que engordavam, mas havia duas coisas que ele sabia que não engordavam muito e ele gostava demais era peixe do mar, e só do mar, e chocolate amargo. Andava com os bolsos cheios de chocolate amargo, mas caro e viajar cinquenta quilômetros só para comer peixe... Após almoçar no restaurante do João da Mata, um caboclo ex-pescador que, junto com sua velha índia tinham aberto este restaurante na beira da praia, muito frequentado pelo povo de dinheiro da Prainha e das outras cidades da redondeza, como a Várzea. Dona Mundica fazia um peixe com molho de camarão que era um manjar dos deuses; tinha umas entradas de caranguejo que eram de arrepiar os nervos (Será que os nervos arrepiam?). A refeição tinha que ser regada a cerveja, pois eles não tinham vinho branco, - um costume de São Paulo - que ele preferia. Depois do almoço e de ter tomado um licorzinho de genipapo, gentileza de Dona Mundica, tomou o carro e saiu rodando sozinho pela cidade, sem destino. Seus pensamentos voavam, mas sempre a Dama era uma protagonista das tragédias e comédias que passavam em seu cérebro amalucado, talvez nessa altura já cheio de cavidades germânicas. Após ter rodado por um bom tempo subitamente deu-lhe a idéia de comprar uma casa na Prainha. Ele pensou em uma casinha de pescador, bem simples, de preferência à beira mar. “O Chefe” mesmo quando era “O Físico” sempre pensou em ter uma espécie de refúgio onde pudesse se isolar. Viver na Várzea era muito difícil, mesmo nos fins de semana quando a sede da OVA não abria, pois muitas pessoas os procuravam pedindo favores que nunca se negava a atender. Morando na Prainha ele esperava que tivesse um pouco mais de tranqüilidade. Quando passou perto de um enorme cajueiro em uma pracinha ele viu um grupo de pessoas conversando e resolve perguntar se sabem de alguém que tivesse, por acaso, uma casinha para vender. Logo um dos três rapazes que estão conversando diz que sabe sim quem tem uma casinha na Rua da Praia e pode vender. É sua mãe, o rapaz diz e pergunta se ele quer conhecer a casa ou casinha que ele não quer iludir o forasteiro. “O Chefe” diz que sim que quer conhecer e abre a porta do carro para o rapaz. Seguem até a Rua da Praia e o rapaz indica onde ele deve parar. Estaciona em frente a uma casinha branca com uma porta e duas janelas pintadas de azul, bem simpática, à sua vista. O rapaz desce e logo abre a porta da casinha e permite a entrada dele. A tal casinha está quase caindo aos pedaços por dentro e ele avalia que vai ser preciso um grande serviço até pô-la em condições de alguém morar. A família que morara ali até há poucas semanas havia deixado alguns móveis como uma cama e o estrado de palha, mesa e quatro cadeiras e um armário; havia também um pote de barro ainda com água que ele provou para ver se estava fria com um caneco de flandres deixado ao lado sobre o banco dos potes. Perguntou quanto os vendedores, se não era ele mesmo, queriam pela casa. O rapaz disse logo: - Nós estamos pedindo vinte e cinco mil. Ele fez uma proposta mais baixa e, após uma negociação bem rápida chegaram ao valor de dezenove mil reais. Ele puxou do talão de cheques e, com sua caligrafia vacilante, preencheu um com o valor acertado e passou ao moço dizendo que viesse no outro dia para irem juntos ao cartório finalizar a transação. Decidiu que dormiria essa primeira noite na casinha para experimentar seu novo domicílio. O rapaz olhou meio desconfiado, mas saiu correndo para o Banco para depositar o cheque antes de qualquer surpresa vinda desse sujeito muito estranho. Como já era tarde ele resolveu se estirar sobre o colchão imundo que cobria a cama de molas à sua espera ali, encostada à parede do quarto. Antes de deitar-se encheu o copo com água e o colocou ao lado, pois tinha necessidade de se resguardar de algum incêndio que pudesse ocorrer enquanto estivesse dormindo ou mesmo matar a sede durante a noite. Esses talvez não fossem problemas, mas a presença de baratas e ratos foi-lhe assegurada logo que a porta que dava para o quintal e a da frente foram fechadas. O ruim mesmo é que não havia energia e por consequência luz elétrica, mas ele acendeu uma vela das grandes para queimar a noite toda, pois não queria ficar no escuro. “O Chefe” demorou muito a conciliar o sono, o que era quase normal nos últimos anos. No meio da noite acordou inquieto e viu a casa invadida por uma luminosidade que ofuscava a luz da vela ao lado da cama. Ele esfregou os olhos e viu então, de cócoras ao lado, um homem idoso ou que parecia ser. Ele tinha o cabelo grisalho, bem comprido, amarrado atrás em um rabo-de-cavalo, estava vestido em uma roupa larga de chita listrada, mas desbotada pelo uso e fumando um pequeno cachimbo que exalava um cheiro suave e embriagador de ervas orientais. A sombra de sua figura na parede era bem maior do que seu corpo e tudo isso aumentava no “Chefe” a sensação de insegurança, pois era como se existissem duas pessoas a mais no quarto. O velho mirava o chão no espaço onde ficava a vela, não permitindo que se distinguissem bem suas feições. Só quando fazia um movimento pendular, balançando a cabeça durante a conversa, talvez para enfatizar algum ponto, ele conseguia ver suas feições. Ele relutantemente aceitou aquelas visões e foi estimulado por sua forte presença. E daí passou a encarar a figura. Esta lhe disse, então, que ele deveria conhecê-lo, pelo menos de fotografias antigas guardadas na casa de seus parentes da Várzea. E que ele estava ali para ajudá-lo na situação em que se achava. “O Chefe” quis saber que situação era essa à qual ele se referia e como ele havia tomado conhecimento e como poderia ajudá-lo se acaso houvesse tal situação. O velho começou então a desfiar uma porção de “histórias” fantásticas, e outras com algum fundo de verdade. Seu discurso, sem muita solenidade e de retórica simples, era de um modo geral convincente: - Todo mundo acredita que você e os seus parentes têm a mania de ficar doente de uma doença antiga que vem matando vocês desde os tempos antigos. Vocês dizem que ela tem por causa uma sensibilidade muito grande e que pode também resultar de amores não correspondidos. Nós – e não queira saber quem sejamos “Nós” – acreditamos que a segunda parte seja correta, pois sabemos que você se sente atraído por mocinhas jovens e isso parece aumentar seus problemas, inclusive os sinais dessa doença. Temos certeza que esse comportamento vem desde os tempos em que você era um jovem professor de Física, lá em São Paulo. Não é verdade? - Você parece saber tudo, então porque está perguntando? Ele falou meio espantado com aquela intimidade. - Bom isso é só para nós nos familiarizarmos... É verdade mesmo que eu, “Nós” aliás, sabemos tudo sobre você. No meu caso eu acho até que você pode me chamar de seu anjo da guarda... - Essa é boa! - Mas voltemos: segundo sabemos, desde muito tempo, você aproxima-se de jovens, mas só quando tem certeza que elas são receptivas, lançam para você aqueles olhares venenosos... Você não gosta de levar um não, não é verdade? Aparentemente você cria na sua mente essas condições... Veja bem essa situação de agora: você acredita que essa tal Dama, como você a chama, poderia ter um caso com você! Santa ingenuidade! - É eu acho que você está certo. E porque isso? - Talvez pelo fato de que você só se aproxima quando tem certeza ou quase que a jovem é capaz de torná-lo alegre, feliz. Mesmo que seja só na sua cabeça. Você gosta de ver e ouvir refletido na pessoa tudo que diz como se ela lhe compreendesse desde os primeiros momentos da relação. Não é verdade? - É sim. Parece mesmo que você me conhece e eu até diria que você tem treinamento psicológico, será? - Não! Coisa nenhuma... Minha experiência vem de outros campos... - Você diz que eu dou preferência nos meus relacionamentos a jovens e sobre as pessoas mais velhas, de minha idade o que acontece? Você, com seu conhecimento do meu eu, deve saber isso. É alguma coisa que me perturba. Ele já entrou na conversa de seu anjo da guarda... - Veja bem, talvez você tenha descoberto bem cedo que as jovens se entusiasmam com seu discurso, sua experiência, seu charme sempre juvenil e a princípio lhe dão atenção. Você gosta, pois parece ser alguma coisa que alimenta sua mente jovem – todos dizem... E acrescente a isso a enorme dose de fantasia que vai por sua mente... Depois, quando elas descobrem que você só tem isso para lhes dar – fantasias - desistem. Veja bem, isso é um sinal da falta de experiência e ao mesmo tempo, não contraditoriamente, é um sinal de bom senso, pois elas não vêm perspectivas em associar-se com você. - Está certo. E eu também nunca vejo. Talvez seja nessa fase que eu comece a me achar um velho enxerido e que tenho o famoso cheiro de velho que afugenta as jovens. - Não sei. Isso é alguma coisa que você decide: como as jovens lhe acham e a partir daí, se quiser, tomar alguma medida. - Tudo bem e com as senhoras de minha idade, o que acontece? - Nesses casos a reação comum parece ser resultado da grande experiência dessas pessoas com objetivos diferentes dos seus: elas querem estabilidade, querem casar... Alguma coisa que você não tem ou não quer dar. - E você acha que eu aceno para situações estáveis no caso das jovens? - Não! Também não. Já falamos a respeito. Nesse aspecto está uma grande variante de seu comportamento com relação a essas pessoas. - Se eu fosse tomar tudo isso ao pé da letra seria algo muito complicado. Mas acredito que haja alguma verdade no que você me diz. - Eu vou voltar para continuarmos essa conversa. - Acho que faltou alguma coisa em suas lições. - Eu sei a que você se refere. As, digamos assim, jovens que têm idade entre esses dois extremos sobre que falamos. - É verdade, você não disse nada sobre elas. - Entre mulheres deste segmento é onde você deveria procurar sua alma gêmea, por razões óbvias. Voltaremos a falar sobre isso. - Está certo, mas tem um pequeno problema. Eu vou deixar esta casa e vou para a Várzea. Vou lhe deixar meu endereço lá... - Ah! Como você é bobinho... Ao ouvir essas palavras “O Chefe” notou que a luminosidade que acompanhava o “seu anjo da guarda” desaparecia e com ela ele próprio. 11/2/09

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