Saturday, September 19, 2009

CONTOS DA RIBEIRA 9


A BOTIJA DO CORONEL

A botija estava enterrada onde fora uma aldeia indígena bem abaixo do atual nível do terreno, no centro da cidade. Sabe-se que esta foi, inicialmente, edificada em uma baixada além das pequenas elevações que acompanham as curvas do rio em sua vizinhança. Muitos dos casarões da cidade, por terem sido construídos com materiais de péssima qualidade, eram demolidos muito antes de serem centenários e por cima de seus escombros construíam-se outros mais modernos, seguindo os modelos e as modas trazidos da França e da Inglaterra. O Casarão não era exceção, pois foi construído, no fim do século XVIII, sobre os restos da casa do Coronel Jonas Carvalho da Silva, cristão novo que, acredite-se, ficou pobre ao negociar com papéis do Império Russo (?) que perderam seu valor. (...)


Essa era uma lenda difundida por seus herdeiros, mas na qual pouca gente na cidade acreditava. A lenda na qual todos acreditavam era a que dizia ter o Coronel Carvalho da Silva enterrado um grande tesouro no principal quarto do Casarão, a sua própria alcova, numa escavação que atingira o nível da aldeia indígena antes habitada por índios Tabajaras. Pobres dos índios, pois nunca acreditariam que sua aldeia miserável e pobre fosse um dia a depositária de uma tamanha riqueza como, muito mais tarde, foi constatado.

Quando o Coronel Carvalho da Silva chegou à Ribeira há muito a aldeia havia desaparecido e os índios remanescentes tinham sido aculturados. Muitos de seus descendentes ainda vagavam pela região praticamente sem nenhuma ocupação fixa, mas emprestando seus braços e corpos aos colonizadores. As jovens índias eram as preferidas para esses misteres mesmo por que seus pais, irmãos, maridos e filhos estavam sendo sistematicamente exterminados por obra das políticas de povoamento. As mulheres passaram a servir aos senhores e seus vassalos como matrizes, uma vez que as patrícias raramente os acompanhavam na grande travessia.

O Coronel não quis formar uma primeira família com uma companheira “branca e de olhos azuis”, pois teria de mandar buscar uma esposa na terrinha e isto custava caro. Ele preferiu esperar enriquecer para fazer isso, mas antes passou a viver “portas adentro” com a filha de Dona Zózima, neta de puros Tabajaras. O pai de Dona Zózima era um francês, engenheiro de minas contratado pelo Governo Provincial para investigar o potencial aurífero da região. Ele não encontrou qualquer depósito comercialmente importante, mas ficou rico com a prata e o ouro encontrados e bem ocultos por ele por longos anos.

Quando o engenheiro desapareceu deixou para sua filha uma grande fortuna em dobrões, ouro em pó e prata; essa fortuna somou-se à que o Coronel vinha amealhando há muito tempo com seu comércio de tal sorte que em pouco tempo o casal e seus filhos não tinham como gastar nem uma pequena fração dela. O Coronel não fez nada diferente do que muitos dos seus colegas abastados: enterrou sua fortuna e em um local muito particular, sua alcova.

Após muitos anos seus descendentes haviam esquecido do que era fato, pois não havia como é natural, nenhum registro escrito. Seja por medo de assalto, dentro e fora da família, seja por medo do fisco que apreciaria taxar seu precioso ouro, o Coronel nunca havia contado a ninguém da existência de seu tesouro. A existência dessa imensa riqueza caiu em completo esquecimento e, pouco a pouco, transformou-se em lenda. Todo mundo dizia, muitos anos depois, ter sonhado com essa botija e ter vontade de desenterrá-la.

Ainda quando o Estado Novo dava as ordens e desordens, um dos descendentes diretos do Coronel achou que deveria tirar a limpo essa história da botija de seu antepassado. O Casarão ainda era o mesmo apesar de ter passado por muitas modificações, mas a planta baixa fora mantida ao longo dos muitos anos que decorreram desde a morte do Coronel, até sua utilização como Museu da Cidade. A administração deste estava a cargo de uma das descendentes do Coronel e filha do Prefeito, o atual interessado na botija. A menina, apesar de constrangida, deu a ordem para se fechar a sala que correspondia à antiga camarinha do Casarão e permitiu ao pai a escavação, mas sob certas condições: deveria ser feita à noite, a retirada dos materiais deveria ser feita exclusivamente nesse período e somente até bem antes da alvorada e mais, nenhum fundo público deveria ser utilizado para seu financiamento. O pai da moça concordou, apesar de relutar quanto a esse último item, e passou a contratar pessoal para fazer o serviço, sob juramento de silêncio. Ele procurou o Tutu em seu negócio no Bairro de São Francisco e, além do proprietário, amigo de longas datas, contratou os serviços do Seu Zé, do João de Ferro e do Neguim do Zé Borba. Os braços e pernas desses quatro seriam mais do que suficientes para o serviço.

O grupo entrava pelo quintal lá atrás, pelo portão da antiga vacaria, lá pelas 9 horas da noite e munidos de picaretas, pás, carrinhos e sacos para colocar o entulho retirado e uma garrafa de cachaça iniciavam a escavação. O Prefeito ficava em pé, fumando seu cachimbo cheiroso, tomando conta do serviço e avaliando o que faria se tudo desse certo.

Dar certo significando, lógico, a descoberta do ouro do Coronel. Após somente duas noites de escavação o Neguim do Zé Borba bate com sua picareta em alguma coisa de madeira e daí em diante foi só alvoroço. Ainda era de madrugada quando o Prefeito abriu com um golpe de picareta o fecho de uma velha arca feita de taboas grossas de aroeira. Quando este levanta a tampa da arca viu, sem muita surpresa, uma quantidade enorme de dobrões de ouro soltos ao lado de sacos de lona grossa contendo ouro em pó e pepitas além de uma considerável quantidade de dobrões de prata.

Todos ficaram excitados e os escavadores se agitavam na perspectiva de receberem um belo pagamento além daquele devido às noites empregadas no serviço. O Prefeito avisou que teria de fazer a contagem do butim e só então faria a distribuição do pagamento. Para isso ele combinou reunir-se com o grupo na bodega do Tutu no próximo sábado. Nesse dia ele apareceu com uma papelada que correspondia a ordens de saques em dinheiro para cada um dos companheiros e que só podia ser sacado se empregado na aquisição de casas próprias no Bairro do Alto construídas por seu genro. Além desse pagamento ele distribuiu 10 dobrões de ouro para cada um deles. Todos firmaram um compromisso de honra em que afirmavam não deixar o segredo da botija do Coronel Carvalho da Silva. O resto do tesouro, naturalmente, ficou com o Prefeito.

Após esses fatos, passados durante a festa de Santo Antônio, o Prefeito tirou licença da Prefeitura e viajou para a Itália onde passou mais de um mês com sua amiguinha gerente da loja de artigos femininos da cidade. Sua mulher não deu nenhuma importância, pois ela continuou a se divertir como sempre. Quando voltou de viagem o Prefeito se candidatou a deputado federal e foi eleito nas eleições realizadas logo depois da queda de Getúlio Vargas. Sua carreira política tem sido de sucesso desde então e ele ocupa atualmente uma Senatoria em Brasília.

Todo mundo na cidade desconfia que ele ficou rico com a botija do Coronel, mas ninguém pode provar. Também ninguém tem nada a ver com isso.


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