Saturday, October 30, 2010

CONTOS DA RIBEIRA 46


UMA VIAGEM COM ELLA AO TANQUE DO MEIO

Não tinha jeito ele tinha de viajar. O velho Coronel dava as ordens e ele obedecia. Era muito difícil não atender aos pedidos do patrão. Ele iria apesar dos inúmeros sintomas de doenças que se apresentavam em seu frágil corpo. O Coronel não era pessoa adequada para ouvir seus queixumes. Ele tinha de procurar alguém, talvez um médico ou um farmacêutico para lhe atender. Ele tinha muitos achaques mesmo, não era brincadeira. (...)

Em qualquer lugar de seu corpo Zé Ricardo identificava uma mazela associada. Nos dedos dos pés ele tinha deformações, mas isso era bobagem, pois ele tinha mesmo era três unhas encravadas afora aquelas que eram pretas devido às topadas quando andava de chinelas de couro. As dores no traseiro limitavam sua capacidade de montar a cavalo, o que era um problema. Suas costas doíam demais e ele não podia mais levantar nem mesmo uma cangalha para encilhar um burro. O pior era que ele tirava água do joelho a toda hora: chegava a mais de um litro por dia. Ele já estava se preocupando com isso. Fumar lhe dava uma tosse muito forte que não passava com nenhum lambedor. Ele precisava visitar ou o Seu Totas ou o Dr. Djalma. O primeiro era mais fácil, pois era somente farmacêutico, já o doutor era muito importante e dificilmente o atenderia, mesmo a mando do Coronel Totonho. Ele foi até a farmácia do Seu Totas onde este o examinou e receitou-lhe umas pastilhas esverdeadas, umas pílulas do mato e mais um clister de sabugueiro. Que ele voltasse em uma semana. O velho farmacêutico lhe assegurava que depois disso ele poderia viajar para qualquer lugar mesmo pro Tanque do Meio como ele havia dito.

Nem uma semana tinha passado e o Zé Ricardo, mesmo tomando todos os remédios passados por Seu Totas, não melhorava nada. O pior é que ele, por cima de tudo, tinha pegado um defluxo enorme que não se acabava com nada desse mundo. A Rosa e a Joana, sem que ninguém soubesse prepararam mais clisteres e diversas mezinhas que só elas tinham a receita. Mas o Zé Ricardo nada de melhorar. Estava chegando o dia da viagem e ele não ficava bom. Foi aí que a Rosa e a Joana notaram que, logo que se afastavam da camarinha onde ele se deitava o homem ficava um pouco mais adoentado. Essa coisa foi seguindo pelos dias até que elas, diante de outros sinais, resolveram fazer uma investigação. Foi a Rosa que se encarregou de tirar a limpo o que parecia ser uma assombração. A Cumade Rosa era uma negra enorme, gorda e muito simpática e agradável. Ela era dessas de sair dos seus azeites para ajudar qualquer um: amigos pobres e gente rica. Porque ela não ajudaria o Zé Ricardo nesse transe difícil? Combinou com a Joana e armou uma rede do lado de fora da camarinha onde estava o melhor positivo do Coronel Totonho. Depois que o cabra adormeceu a Rosa deitou-se e ficou na escuta para ver o que acontecia. Quando foi lá pela madrugada ela ouviu uma conversa que vinha do quarto onde estava o Zé Ricardo. Parece que tinha uma outra pessoa e essa reclamava dele por não ter ainda se despachado (...). O doente argumentava que não podia, pois tinha de fazer uma viagem por mandado do Coronel, tinha de cumprir essa determinação. A voz fraca, mas dava para ser ouvida pela Rosa, argumentava que não, que ele lhe devia isso e que ela já tinha esperado muito, desde o dia em que ele levou a estrepada no pé. Como o Zé parecia não concordar com o chamado insistente dessa voz a Rosa ouviu então a ordem: - Pois bem você vai para o Tanque do Meio, mas eu vou-lhe acompanhando. Qualquer coisa você vai comigo. A partir daí a Rosa não ouviu mais nada, senão o ronco alto do Zé Ricardo.

Mais uma semana de tratamento intensivo o positivo do Coronel Totonho saiu da rede e foi até ao Armazém para receber as ordens,pois ele se acreditava curado das mazelas que o tinham acometido nas últimas semanas. O Coronel entregou-lhe um encerado contendo dois contos de réis e uma carta para o Capitão Sócrates lá no Tanque do Meio. O povo espiculava na Ribeira a respeito de qual seria o interesse do Coronel. Alguns achavam que ele queria se associar ao Capitão em um barco de pesca de camurupim, mas ninguém sabia ao certo, lógico.

O fato é que o Zé Ricardo aprontou a mula que ele sempre usava e tocou pros rumos do Arataim e do Pará, chegando a Jijoca, Solidão e no Acaraú para chegar no Tanque do Meio depois de bem uma semana de viagem. Ele chegou lá arrasado, com as costas doendo e cheio de furúnculos. Como era de se esperar a gripe voltou a lhe atacar. Procurou o Capitão Sócrates, um baixinho invocado, pescador de primeira que, ao receber o positivo, foi logo lhe oferecendo uma pinga. O Capitão pegou os dois contos e foi logo entregar pro chefão, o Coronel Dias que era na verdade o dono do negócio. Enquanto eles preparavam os documentos para enviar para o Coronel Totonho. Bem perto da beira do tanque tinha uma bodega onde o Zé Ricardo se arranchou pra dormir e esperar as ordens dos homens pra voltar pra Ribeira. A dona da bodega armou uma rede que, de tão suja, o caboco tinha que se deitar com o chapéu cobrindo a cara, senão o cheiro matava ele. Quando foi de madrugada o Zé Ricardo começou a dizer umas palavras que ninguém entendia. A dona da bodega levantou da sua rede e ficou sentada ao lado dele para ver se entendia alguma coisa. Ela depois contou pra todo o mundo o que ouvira. Ela disse para todos inclusive o Coronel Dias, o Capitão Sócrates e todos os fregueses que tinha visto uma mulher vestida toda com um vestido branco brilhoso que conversava com o caboco. A mulher dizia que já estava cansada de esperar por ele e que não admitia mais que ele não lhe atendesse logo. Não tinha esse negócio de só se entregar quando chegasse na Ribeira. Ele tinha que ir com ela era agora mesmo. Não tinha de tomar nem cachaça, nem café. Diz a bodegueira que depois disso o caboco, positivo do Coronel Totonho lá da Ribeira, deixou de falar; ela então botou um caco de vidro na frente da boca dele pra ver se ele respirava. Ela também não mais ouviu a voz da mulher de branco.

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