Saturday, February 06, 2010

CONTOS DA RIBEIRA 26


O QUE ESPERA A GENTE

Somente de portas na sala grande, depois da varanda, a casa tinha treze. Havia ainda as janelas que davam para a várzea e aquelas que davam vista para o Rio e mais adiante para a Serra. O número de portas parecia indicar uma existência de muitos percalços e mais azares. Era assim que o Velho Raimundo via sua atual vida desde a rede branca no alpendre de sua morada na Furna da Onça, olhando pros lados da Serra. (...)


Já aposentado, vivendo das pequenas rendas da terra que, em outros tempos, sustentava ele e seus treze filhos e suas famílias, ele passava os dias aborrecido. Com tudo e com todos. Para falar a verdade só sua neta Isaurinha, aquela que tinha o problema na vista e que não enxergava desde os doze anos, é quem lhe dava alegria. Pode-se até dizer que os dois viviam em um mundo só deles desde que a catarata que o atacara só se acentuava nos últimos tempos. O seu tempo era um de mortes e almas penadas, pois sua religião lhes levava a essas fantasias. Era difícil acreditar que o velho tratava com a neta tão formosa de assuntos tão trágicos e desagradáveis. Era isso que pensava o seu primo e amigo Augostinho, morador da Barra e que sempre o visitava, às vezes levando um amigo e primo bem mais distante que morava na Capital. Nesse sábado os dois chegaram à fazenda do Raimundo à boquinha da noite, pois era uma noite de lua cheia e eles queriam aproveitar para por em dia os assuntos que sempre tinham para conversar. Depois de servido o jantar, que era mais uma ceia bem fornida, com cuscuz, tapioca, queijo, coalhada e muito café, todos vão para a varanda a fim de aproveitar o luar. Levavam uma caninha serrana feita na fazenda mesmo para espantar os mosquitos e os espíritos malignos. O Velho Raimundo estava muito triste com a morte de sua mulher ocorrida há pouco menos de um mês e isso perturbava todos os moradores das redondezas, mesmo se não fossem parentes do velho.

Ele se queixava de estar vendo e sentindo coisas estranhas em casa. Ele que nunca fora disso estava notando que os ratos do telhado estavam mais assanhados, faziam um enorme barulho e não tinha gato que os fizesse afastar. Raimundo contava que sempre que esses ratos apareciam era certo que ele via o espírito da finada. Quando ele falou isso Augustinho o interrompeu perguntando:

- Compadre quer dizer que você ta vendo alma? O espírito da Comadre?


- É Compadre... Até a Isaurinha também vê a sua avó...


Todos ficaram admirados e lamentando que o Velho Raimundo estivesse nessa situação. Ele talvez precisasse da ajuda de alguém, talvez de um filho ou filha. Mas parece que os filhos não lhe davam muita atenção. Hoje em dia os filhos têm muitas obrigações, ocupações e deixam os pais meio que jogados. Mas, talvez não fosse só isso, pois o Velho tinha morando com ele a Isaurinha, será que ela não o ajudava a passar esses apertos? Mas, segundo ele ela mesma via o espírito da avó...


- Compadre será que o João não pode passar uma temporada com vocês aqui na Fazenda, diz Augustinho. Seria bom, pois ele é calmo e na certa daria conta dessas aparições. O amigo e primo distante completa:

- E aquela sua filha que vive na Várzea não poderia ficar com vocês por uns tempos?


Raimundo ouvia essas sugestões e balançava a cabeça, talvez concordando, talvez não. Ele já pra mais de setenta anos e estava acostumado com as coisas dos matos e pensava muito que isso, esses assuntos de vida e morte, só se resolvem mesmo com a morte chegando novamente. No pensamento dele, era só no pensamento, pois ele não sabia explicar, não tinha palavras, ele já estava chegando ao fim da vida e nada mais adiantaria fazer. Era somente esperar.


Adivinhando os pensamentos do Velho o primo distante quer interferir para que a conversa não seja tão macabra e assustadora como estava parecendo que seria. Ele pergunta:


- Com todo o respeito primo você não acha que seria bom se tivesse alguém que cuidasse de você, como a Comadre cuidava nos tempos de antigamente? Uma mulher nova dentro de casa talvez alegrasse sua vida. Sua neta Isaurinha não conta, pois daqui a pouco ela vai arranjar um casamento e morar em outro lugar. Você já pensou nisso?


Raimundo olha para o primo distante e balançando a cabeça diz:


- É difícil, muito difícil botar uma mulher aqui no lugar da finada... Os três tomam um trago da caninha e acendem um cigarrinho. Olham para a lua que ilumina tudo em frente até quase ao pé da Serra. Guardam silêncio até que o Velho Raimundo diz:

- Além de tudo isso, dos ratos, das visagens, e da gente ficar um tempão sozinho ainda tem aquilo de dizerem para nós que a gente tem manias de velho e que é preciso combater essas besteiras.
Os dois visitantes se entreolham como que dizendo:

- Será isso que espera a gente também?

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