Saturday, November 13, 2010

CONTOS DA RIBEIRA - 47


FARMÁCIA SÃO PEDRO

A farmácia São Pedro era conhecida em toda a região. O dono, farmacêutico formado na Faculdade da Bahia ainda no tempo do Império, era famoso por produzir medicamentos muito eficazes contra uma série de males. Seu Tito dominava todo o setor de saúde da Ribeira, pois não havia médicos num raio de 20 léguas. Somente em Sobral havia médicos formados, mas nunca estavam à mão para atender a pacientes em lugares tão longes como a Ribeira. (...)

Seu Tito estava acostumado a tratar de doenças dos mais diversos tipos que apareciam na cidade. Sempre com uma margem de sucesso que lhe angariava uma sólida clientela e bastante dinheiro, pois com ele não tinha essa história do “Deus lhe pague”: os pacientes agradeciam o tratamento e a cura e nunca pagavam em moeda sonante. Sempre aparecia algum doente com erisipela, morféia, espinhela caída, câncio e ferida braba, dor de dente, ostoporose e febres dos mais diferentes tipos. Ele lutava contra uma grande concorrência por parte de Mãe Joana e outras rezadeiras que tinham muita freguesia, atuando na periferia da cidade, principalmente no Baixio.

Alguns dos remédios produzidos por Seu Tito eram conhecidos em toda a região e vendidos com grande sucesso. Havia dois produtos muito populares e que tinham uma saída grande em sua farmácia: o “Vida longa” e o “Chá de capororoca”. O primeiro era indicado para ostoporose e o chá, segundo o farmacêutico, ajudava no tratamento da morféia, doença muito temida em toda a região. A casca da capororoca, uma planta do Aumazona, era enviada em pequenos fardos pelo irmão de Seu Tito que tinha um seringal no Alto Envira. O farmacêutico preparava esse chá nos fundos da farmácia onde ele tinha uma espécie de laboratório. Ninguém tinha permissão de penetrar no local que era escuro e mal cheiroso. Aí ele preparava os outros remédios, incluindo o “Vida longa”, que, este tinha um cheiro forte de sardinha. Era também de se notar o cheiro forte do “Chá de capororoca”, pois cheirava a osso queimado.

Seu Tito já estava estabelecido há muitos anos quando apareceu na cidade, vindo das bandas do Pará, um senhor bem vestido e falante que alguns lembravam ser neto de um dos antigos coronéis criadores de gado da região. O Senhor Carvalho tinha vindo à cidade de seu avô a procura do mausoléu de sua família. Sua intenção era trasladar os restos mortais dos seus parentes para o Cemitério de Nossa Senhora da Soledade em Belém onde as mulheres de sua família poderiam rezar a vontade pela alma dos seus antigos parentes.


O Senhor Carvalho foi ao Cemitério e, falando com o Seu Raimundo, o responsável por sua guarda, localizou um dos túmulos que lhe interessavam. Era exatamente o do Coronel Carvalho, o primeiro membro da família a ser enterrado no Cemitério da Ribeira. Localizado o local do sepultamento, marcado com uma lápide de mármore branco, que por sinal estava quebrada, o Senhor Carvalho foi à procura do Padre Venâncio a fim de pedir autorização para a remoção e traslado do que restava do Coronel Carvalho. Após muita conversa o padre dá autorização para o parente fazer a inumação de, no máximo, cinco corpos. Aliás, não eram mais corpos, mas certamente esqueletos bem consumidos pela ação do tempo, dos agentes naturais.

Seu Raimundo foi contratado pelo Senhor Carvalho para abrir os túmulos de cinco parentes, a essa altura, já localizados no cemitério. Foi decidido que a operação se daria à noite e sem qualquer divulgação ou anúncio e somente pelo velho guardador de almas. Os restos, ou melhor, os ossos, seriam de imediato postos em caixas de madeira, identificadas e lacradas para serem levadas para o Pará.

Quando Seu Raimundo começou a trabalhar no túmulo do Coronel Carvalho ele notou logo que alguma coisa estranha tinha acontecido. Ele encontrou a tampa do caixão fora do lugar e o dito cujo todo destroçado. O velho logo descobriu que os ossos do Coronel não estavam em seu caixão. Ao ser comunicado do fato o Senhor Carvalho, desconfiando de alguma coisa, mandou que Seu Raimundo abrisse logo todos os outros túmulos anteriormente escolhidos. Foi sem muita surpresa que se descobriu que todos os ossos de todos os defuntos escolhidos estavam faltando.


Logo, logo o Senhor Carvalho foi à Delegacia de Polícia para dar queixa da violação dos túmulos de seus parentes. Acontece que o Senhor Delegado não se encontrava e a Ordenança disse que ele teria de ir até a Praia do Pinto, cidade vizinha, para fazer o BO. Depois que ele fez o tal BO e a denúncia foi instaurado um rigoroso inquérito que, após mais de cinco anos ainda não foi concluído. O Senhor Carvalho voltou para o Pará de mãos abanando.


A notícia da violação correu toda a cidade e, os cochichos e fuxicos e boatos corriam soltos pela cidade. Todos diziam que o responsável seria Seu Tito, o farmacêutico. Adiantavam também que os remédios que ele preparava continham pó de ossos de cadáveres e certamente carne humana apanhados de defuntos no Cemitério.

Confrontado com os rumores Seu Tito negou veementemente o fato e sugeriu que aquilo seria intriga de seus desafetos e de membros da oposição. Após as eleições e a volta do Senhor Carvalho para o Pará os boateiros e fuxiqueiros deixaram de mão Seu Tito e suas mezinhas. Ele passou a ser visto de madrugada caminhando pela estrada que ia para a Praia do Pinto com um saco vazio nas costas. Os fuxiqueiros dizem que ele ia visitar o cemitério das crianças.

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