Sunday, July 25, 2010

CONTOS DA RIBEIRA 39


COMILANÇA NO CASARÃO DO CORONEL CELESTINO

Rita e Walter chegam de viagem de lua de mel na Europa e vão logo descansar na Ribeira. Parecia estranho a muitos que, depois de haverem viajado por quase um mês, fazendo dez cidades da Europa Central e do Leste e ido até a Turquia eles precisassem descansar e logo na cidade natal de Rita. (...)


Somente quem faz uma viagem dessas, sem guias e roteiros pré-determinados é que tem idéia de como pode ser cansativo o programa. Ter de escolher igrejas, museus, monumentos históricos, bares, restaurantes e demais atrações sem o auxílio de uma pessoa que resolva tudo pode ser muito mais barato, mas também pode se tornar muito cansativo, apesar de certamente ser mais gratificante. Mas, de qualquer modo, nessas viagens, o bom é encontrar compatriotas nos lugares mais estranhos e inusitados. Isto sempre ocorre e pode ser motivo de animação. Entre as dezenas de histórias e situações que Rita e Walter viveram nessa viagem eles lembram do velhinho brasileiro de seus 70 anos que parecia ter somente 50 ao contar que o caixeiro de uma loja em Istambul lhe tinha oferecido garotas do “tipo carioca” e que lhe serviriam em tudo e muito bem. E aquela guia no ônibus em Budapeste que, falando inglês, se dirigia constantemente a Walter com olhares concupiscentes. Walter, a despeito de ter Rita sempre à sua cola, lembra com saudade dos olhares doces daquela garçonete do bar no Rossio, em Lisboa, americana, mas de natureza portuguesa, a servir-lhe aquele vinho do Porto acompanhando o Fraisier excepcional. E que dizer da cerveja em Praga, dois litros da mais legítima Pilzner, acompanhando um maravilhoso kassler. Eles não esquecem também do goulash com que se deliciaram em Budapest. O casal adorava passar suas experiências de turistas para os tios de Rita, os herdeiros do imenso casarão na Ribeira onde se hospedavam toda vez que achavam tempo para ir à velha cidade. E, agora, depois da viagem à Europa, era a ocasião adequada para isso.

O tio de Rita, o Capitão Zé Joaquim, havia herdado o casarão de seu pai e passado a morar nele com sua mulher, Tia Umbelina. Esta era descendente dos primeiros franceses que chegaram à região e, certamente, por isso, guardava tradições de nobreza. O casal tinha, no entanto, incorporado à sua rotina de vida muito dos costumes do povo e se consideravam ribeirinhos de primeira cepa. Rita e Walter adoravam as conversas na sala principal do casarão deitados nas redes de tucum, logo após o jantar. Nessas conversas o assunto não podia deixar de girar sobre os parentes. Os velhos tios diziam, em sua linguagem peculiar, que se sentiam “abadonados” pelos parentes mais abonados; estes quando os visitavam era para conversar sobre os filhos doutores e já ricos. Eles nunca tocavam nos problemas decorrentes da partilha das posses na Ribeira, como ficariam essas questões. Era muito lamento sobre assuntos difíceis de resolver e o jovem casal acreditava não ter nada a ver.

Os jantares no Casarão eram sempre fartos e regados a um bom vinho, apesar do casal de tios já ser de idade e ter muitos problemas de saúde, tipo pressão alta e diabetes. Mas a dieta deles desde cedo com o café da manhã se fazia notar por ser bem pesada, pois sempre havia tapiocas feitas pela Fransquinha, cuscuz de milho, muito leite e queijo e café farto. Ocasionalmente o café era servido acompanhado de paçoca ou ovos mexidos. Para o almoço Tia Umbelina mandava preparar galinha à cabidela, um cozido de carneiro ou de bode, peixe ou mesmo um belo arroz de camarões e sempre um baião-de-dois. O incrível é que havia sempre diversos pratos para o gosto de cada um e, especialmente, do jovem casal. Os doces, então, nas duas refeições principais, eram um abuso, pois havia doces de goiaba feito em casa mesmo, de caju, comprado na Dona Nilda, de banana em rodinhas, de buriti do Piauí mandado pela sobrinha Carol. Era só escolher, ou melhor, era só misturar um com o outro e adicionar um pouco de leite como o Capitão costumava fazer.

O belo casarão dos tios de Rita fora construído nos tempos da seca dos dois setes na rua principal da Ribeira que nesse tempo era chamada de Rua do Azevedo. O jovem casal procurou saber quem fora esse Azevedo, mas ninguém tinha conhecimento. O povo da Ribeira era assim mesmo, eles haviam deixado sua memória se esgarçar. Todo mundo na pequena cidade dizia que o Coronel Celestino só pôde construir sua bela casa de morada porque havia sobra de materiais das obras que a Comissão de Socorros realizou na cidade. Esse boato originou-se do fato de que ele fora, por algum tempo, responsável por essas ditas obras e seu tio era o fornecedor dos materiais para elas. É de justiça dizer que absolutamente nada referente a desvio desses materiais foi comprovado, mesmo depois de uma rigorosa investigação feita pela Câmara Municipal, cujo Presidente era seu sogro. O Coronel Celestino e sua família foram morar no casarão, mas passaram somente pouco tempo, talvez quatro ou cinco anos quando a família mudou-se para a capital da Província. O Coronel foi assumir um cargo importante – Secretário de Justiça sob o governo do Comendador Augusto Nobre. A casa passou a ser ocupada pelos avós de Rita.

O avô de Rita era um homem, dizem, muito correto e honesto. Era daqueles que garantiam suas dívidas com um fio de cabelo do bigode. Este era espesso como a barba adornos que usavam todos os homens de valor do seu tempo. O velho trabalhava com o Coronel Celestino, eram muito amigos e sócios em vários negócios. Quando este foi embora para a capital o velho comprou a maior parte de suas propriedades e o casarão foi uma dessas. Muitos flagelados da seca trabalharam na construção, mas muitos dos operários eram escravos que pertenciam ao Coronel e seus amigos. Contam-se histórias horripilantes sobre o que sofreram todos, sem exceção, sejam escravos sejam flagelados. Mas, o fato é que os escravos sofriam bem mais, pois era muito comum serem açoitados quando os feitores decidiam que eles tinham feito alguma coisa de errado. Nesses casos os flagelados não eram açoitados, mas ficavam dias sem comida. Não se sabe o que era pior.

Dezenas de histórias desses tempos chegaram até os dias do Capitão e de Dona Umbelina e eles gostavam de repeti-las para as visitas, principalmente para os sobrinhos que sempre passavam dias com eles. Eles gostam muito de contar o sonho que o Constantino, um caboclo já meio idoso, mas que ainda trabalhava como se tivesse vinte anos, teve com seu filho. Diz-se que o caboclo sonhou que o pixote estava dando comida ao seu cavalo preferido e o mantinha amarrado em torno do corpo, com um cabresto de couro cru. Quando um cachorro latiu perto o cavalo assustou-se e saiu aos pinotes e no ato arrastou o garoto. Isso por uns bons duzentos metros. Quando conseguiram parar o animal o menino estava todo quebrado e não resistiu, chegando logo a óbito. Outro caso era aquele que dizia ter uma das muitas empregadas do Casarão, em uma noite de insônia, talvez pensando no ex-namorado, havia visto com uma grande nitidez a irmã de tia Umbelina a pedir-lhe notícias do Capitão Fabrício, seu eterno apaixonado. Ela dizia ter ficado quieta até que a alma, só podia ser uma, desvanecesse. Havia também a história da existência de uma botija mostrada em sonho por um antigo parente do Coronel Celestino e por muita gente mais. Nunca ninguém se atreveu a procurar essa botija, talvez ela nem tivesse sido enterrada no Casarão.

Rita e Walter quando visitavam o tio Zé Joaquim e Umbelina no Casarão dormiam sempre em uma das camarinhas que eram utilizadas pelo Coronel Celestino e sua mulher e, depois que o casal foi embora para a capital, passou a ser utilizada por Dona Censa, avó do Capitão Zé Joaquim. Toda a Ribeira conhecia Dona Censa, pois ela costumava andar pela cidade inteira pedindo esmolas, o que de modo algum tinha necessidade de fazer. Seu neto não era rico, mas tampouco era miserável a tal ponto de negar qualquer coisa à sua “santa avó”, como ele dizia. A velha era muito sarcástica e tirava prosa com todo mundo; sobre os novos doutores que chegavam à cidade depois de se formarem no Recife ou na Bahia ela dizia que “eram doutores de ciências ocultas e letras apagadas”. Sobre a primeira definição ela talvez entendesse alguma coisa, pois se dizia que ela era um tipo de macumbeira, o que ela negava de pés juntos. Mas o fato é que sua camarinha era totalmente inaccessível aos de casa. Somente depois de seu passamento tranqüilo é que foi possível arejar o quarto e coloca-lo a disposição de visitantes da família.

O descanso dos sobrinhos do Capitão Zé Joaquim estava chegando ao fim, pois já fazia quase uma semana de sua chegada e as obrigações na Capital chamavam os dois. Os tios estavam contrariados, pois iriam perder a companhia dos jovens que muito lhes agradava. Para a despedida Tia Umbelina resolveu preparar um jantar que há muito ela achava estar devendo ao casal. Mandou preparar um assado de carneiro com muitas ervas e uma galinha pé seco que havia sido mandada pelo Zé Freire, lá dos Frios. Tinha também um baião-de-dois especial, com muita nata e queijo. Tudo isso acompanhado de vinho comprado na mercearia do Vicente da Terezinha, que tinha de um tudo. Os doces eram os de sempre e mais uma compota de groselha daquelas apanhadas no quintal da Dona Suzete. Seguia-se um cafezinho passado na hora. Após o jantar os dois ainda ficaram conversando um pouco com os tios, mas a comilança lhes deu um sono muito grande e logo depois eles se recolheram à camarinha de Dona Censa.

Parece que era meia-noite quando se ouviram, por todo o Casarão, gritos horríveis, como de lamento. Houve um enorme rebuliço até que o Capitão Zé Joaquim e Tia Umbelina e mais algumas das empregadas identificaram a camarinha onde dormiam Rita e Walter como a origem dos gritos. Todos correm para lá e encontram Walter tendo Rita ao seu lado e branco como alvaiade a se tremer todo, sem controle de si mesmo. Todos querem saber o que havia ou o que estava acontecendo. O rapaz balbuciava, a princípio, palavras ininteligíveis, mas pouco a pouco conseguiu relatar o que acontecera.
Ele dizia que havia visto a alma ou o espírito ou uma visão que, no seu entendimento, era a alma de Dona Censa. Esta parece lhe pedia que intercedesse junto às forças do bem que a livrassem do homem que a perseguia. Walter também disse que a velha senhora ameaçava cortar a cabeça desse homem e que sangue em breve correria ali naquela mesma camarinha. Após ter Rita e Walter se acalmado e todos se preparado para voltar aos seus respectivos quartos Fransquinha, que é muito esperta, descobre que o lençol usado por Walter está manchado de sangue. E mais, sangue da enorme ratazana cujo corpo jaz ao lado e que ele matou quando jogou o lençol no chão com o animal que, certamente, havia caído do telhado sobre ele.


A Grotesque Old Woman, Possibly Princess Margaret of Tyrol, circa 1525-30
by Quentin Metsys


No comments: