Saturday, September 25, 2010

A VIDA AVENTUROSA DE TROFIM VASEC EM DIVERSOS CAPÍTULOS – 15


AS MENINAS DO SEU LALO, O BÚLGARO

Quando as duas “meninas” se aproximavam do canto da cerca do Oiteiro elas começavam a ouvir o vento batendo nas portas da casa. Elas tinham se acostumado com a casa desde muitos anos quando seus pais passavam longas temporadas lá no tempo dos invernos fartos. Mas sabiam que as portas não batiam como agora. Isso era o vento forte da Várzea de Baixo que fazia as portas deixadas abertas de muito baterem sem parar. Era assim com todas as casas em redor e por muitas léguas depois que os moradores as haviam abandonado. (...)


Na cidade elas moravam em uma casa grande, baixinha, de duas águas, como era comum no tempo. Não sei se a arquitetura era colonial ou outro estilo. Poderia chamar de um estilo próprio. Ela ficava numa esquina da rua principal, mas bem antes do miolo que distava talvez um quilômetro. Se você estivesse no Mercado teria de andar por um areal enorme para chegar na casa das três moças.

O Pai, Seu Lalo (talvez Estanislau, ninguém sabia), chamava suas filhas de as “meninas”, assim, mesmo depois de elas já terem entrado no caritó havia muito; elas não eram modelos de beleza, mas ainda guardavam certo ar de nobreza. Não se incomodavam de serem chamadas de solteironas, apesar de saberem que todos na Várzea faziam chacota delas por seu estado civil, mesmo sendo filhas de fazendeiro rico. As moças foram criadas entre a casa da Ribeira e a casa do Outeiro. Eu digo casa, pois elas não saiam das respectivas camarinhas, mesmo depois de sua mãe ter morrido e isso já fazia muito tempo. Quando chegou a vez do Pai elas se viram herdeiras de uma pequena fortuna que constava de casas na cidade e da fazenda de onde o velho tirou todo o sustento de sua vida e conseguiu amealhar alguma coisa.

Ele era um senhor de origem estrangeira, parece que do leste europeu; ninguém tinha muita certeza, mas parece que era de origem búlgara, um eslavo ou tártaro, como muita gente boa. Trazendo algum dinheiro ele comprou a fazenda do Outeiro e passou a criar gado depois que estabeleceu uma bela plantação de forrageiras cujas sementes trouxera em sua bagagem. Logo passou a produzir muito gado e o vendia, principalmente, ao Sr. Benício que o abatia e preparava mantas de carne seca para o comércio de Pernambuco. O couro verde era vendido na cidade mesmo para o Coronel Totonho ou para o Coronel Oliveira que tinham seus curtumes.

A terra do Outeiro tinha também um grande e belo carnaubal produzindo muita palha e dando um grande lucro. Todos sabemos que o carnaubal só dá lucro quando os tiradores de palha trabalham dobrado e ganham a metade. Era assim também no Outeiro. O que fazia com que esses tiradores ficassem anos a fio trabalhando na fazenda era o fato de que Seu Lalo permitisse que eles plantassem pequenas roças atrás de seus casebres de taipa construídos em torno da casa grande.

Após casar-se com a filha do Coronel Oliveira e morar no Outeiro por algum tempo Seu Lalo mudou-se para a Ribeira onde nasceram suas duas filhas. O velho ia quase diariamente a fazenda, pois sabia que se deixasse de tomar conta do que era seu, logo, logo não teria mais nada. Foi assim por muito tempo. A família fez amizade na cidade, as meninas foram para a Escola da Rita onde aprenderam a ler e a contar. Todos iam a Igreja, apesar de Seu Lalo não professar a religião.

Quando as meninas cresceram, mas antes de serem as “meninas” de seu Pai muitos pretendentes apareceram para fazer-lhes a corte. Certa tarde de domingo, depois da missa, apareceu na casa deles um senhor distinto com a fala arrevezada pretendendo fazer uma visita de cortezia. O senhor identificou-se como um estrangeiro que acabara de chegar na Ribeira e pretendia fazer amizade com pessoas de relevo do lugar. Suas pretensões ficaram logo evidentes, pelo menos para as filhas de Seu Lalo. Como o estrangeiro que disse ser de origem eslava, certamente da mesma estirpe do dono da casa, identificou-se como um comerciante estabelecido na Praça do Mercado, teve aprovação da família para se relacionar como amigo. Daí para fazer a corte de uma das filhas do dono da casa foi um passo. Ele começou a namorar, como nos tempos antigos, não como agora, com a mais nova das irmãs, aquela que tinha um cabelo curto e o rosto redondo como uma bola.

O namoro durou até que o eslavo, nada mais nada menos que nosso conhecido Trofim Vasec, jogou os olhos para Aline, a filha do Coronel Totonho, bem mais arranjada que as filhas de Seu Lalo. A partir desse insucesso amoroso a filha de Seu Lalo entrou definitivamente no caritó e levando a irmã. Foi nesse tempo que elas passaram mesmo a ser conhecidas como as “meninas”. Ficaram em casa para sempre e, a única diversão, depois que o pai se foi era irem ao Outeiro para ver se as coisas iam bem.

Seu Lalo sofria de um mal incurável que o acompanhava desde criança. Ele tinha a urina doce e acompanhando isso, o que era pior, era que qualquer ferida que ele tivesse nunca sarava. Certo dia ele levou uma estrepada no Outeiro, estrepada essa que virou uma ferida braba que nunca sarou. O resultado foi que não demorou nada e o velho morreu. Seu corpo foi enterrado no Cemitério de São João e acompanhado por muita gente e por duas bandas de música executando peças fúnebres.

As “meninas” ficaram tomando conta dos negócios, agora restritos a pouca coisa no Outeiro. Mas elas tinham que sempre de ir até lá para tomar conta desse pouco e que lhes dava o sustento. Passaram-se muitos anos e, depois da Grande Seca, com a maior parte dos moradores tendo abandonado suas pequenas roças as “meninas” se encontravam em situação muito difícil. Elas propriamente não sabiam fazer coisa alguma na fazenda, o que elas sabiam era somente essas coisas de bordado, mas isso não dava pra nada. Ninguém comprava. Para piorar sua situação os poucos moradores que ficaram não mais queriam trabalhar, pois eles recebiam uma esmola do governo que dava para comprar feijão, rapadura e ainda sobrava para comprar um radinho de pilha, a novidade na Ribeira.

As “meninas” tiveram de vender o Outeiro. Para isso elas procuraram Trofim Vasec e lhe ofereceram a fazenda. Ele pessoalmente não comprou, mas foi o intermediário
na venda para o homem mais rico da cidade, que era também o político de maior prestígio na região.

O quadro acima é
Spring, c.193 de Tamara de Lepincka

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