Wednesday, January 02, 2013

O SONHO DE BENITO – HISTORINHAS DAS QUARTAS

Benito chegou tarde e com muita fome, pois não comia desde a hora do almoço. Foi direto para a geladeira de tranca, uma Electrolux branca, a querosene, de antes da Guerra, muito enferrujada. Sua mãe sempre se esquecia de trancá-la, ou a deixava mesmo aberta imaginando que ele fosse chegar arado de fome, como na verdade chegou, e fosse procurar alguma comidinha sobrada da janta. (...) Não encontrou muita coisa. Um prato de feijão temperado com linguiça, salsinha e cebolinha, algum arroz branco e uns bifes duros que pareciam ser de carne de boi enfezado. Tudo gelado ou quase. Abriu uma garrafa de cajuína, um produto de Dona Sálvia, sentou-se à enorme mesa na varanda de trás, ainda quente do calor escaldante do dia, e começou a engolir a comida. Empurrava os bocados com goles da bebida doce, de seu agrado. Quando acabou de comer passou um guardanapo de pano de xadrez avermelhado nos lábios e acendeu um cigarro Continental. Ficou sentado fumando por um bom tempo, olhando para o jasmim branco e pensando na sua vidinha de merda. Ainda não estava cansado de pensar quando foi deitar em sua rede banca de varanda feita pela Fransquinha. Demorou um tempão até pegar no sono. Parece que era uma herança de família, pois seu pai contava que o avô, lá na Itália sempre tinha uma insônia que ficou celebre entre os amigos e parentes: ele urrava de tanto querer dormir e não poder. Nesta noite Benito teve um pesadelo e tem certeza de ter dito alguma coisa, sabe mesmo que deu um grito alto que chegou a acordar seu pai, o velho Constantino, dono da única padaria decente da cidade. Eles tinham até pão preto e bolos e estocavam uma boa quantidade de vinhos italianos e portugueses. Pela manhã, à mesa do café puxado a tapioca fininha com nata e queijo de coalho, o pai lhe pergunta o que tinha acontecido, pois ele acordara com seu grito, assim como quem estivesse pedindo socorro. Benito, quase engasgado com um pedaço de tapioca, lhe diz que não tem a mínima idéia do acontecido. Não sabe com que ou com quem sonhou. Vai lá foi uma alma penada. Mas ele não sabia nada. Pelo olhar atravessado que o velho lhe deu desconfiou dessa resposta negativa e ficou na espera, certamente o filho falaria alguma coisa para a mãe e o sonho do menino acabaria sendo revelado, confirmando suas suspeitas. Ele, então, poderia fazer uma fezinha no jogo do bicho. Não que Dona Júlia não guardasse os segredos de seu filho, mas entre os dois não tinha isso, principalmente tratando-se de assuntos de Benito. Ele não disse que tinha ouvido nitidamente a palavra que o filho havia dito no sonho, não falou nem para Dona Júlia, mas o menino tinha pronunciado o nome pelo qual Mussolini era conhecido: Duce. O casal era religioso, isto é, eram católicos, mas não era de frequentar muito a Igreja. Seu Constantino era um italiano chegado de Nápoles e, como seu nome sugeria, tinha raízes bem cristãs; lá em sua terra não era como aqui onde os nomes não têm qualquer significação. Ele era pouco interessado em assuntos da Igreja, mas fazia parte da Irmandade do Sagrado Coração. Dava às vezes algum dinheirinho para as obras pias. Não confessava, pois, dizia, nunca pecava. Já Dona Júlia era descendente de portugueses chegados à cidade há muito tempo, mas não tinha conhecimento algum sobre a terrinha de seus antepassados. Ela era também religiosa, mas não muito, como algumas de suas amigas e comadres quase todas Filhas de Maria, que não saiam de perto da batina do padre Franco. Logo depois do café Benito saiu à rua, pois queria encontrar-se com algum dos amigos, talvez o Rubinho, seu eterno companheiro de caçadas de canário e seu principal confidente, para não dizer o único. Entre os dois, diferenças de tipo físico e de classe chamam a atenção, quando estão juntos. Rubinho é um negrinho de alma branca e cabelo enrolado, enquanto que o filho de Seu Constantino é branquelo, de cabelo liso. Mas, ao contrário do esperado por Benito, logo na esquina da Praça da Matriz, ele encontra o Chiquinho, o filho do Seu Mota, capitalista e dono do maior armazém da cidade. Eles são amigos, mas têm lá suas diferenças. Benito sempre diz para o amigo, mesmo na sua cara, que ele é muito chato e falso. Chiquinho não se incomoda com essa agressividade do outro, pois também fala, pelas costas, poucas e boas dele. Chama o amigo de enrustido, o que parece logo carimbar sua personalidade. O caso é que Benito estava com vontade de dividir com alguém a preocupação que lhe estava dando o sonho que tivera e o amigo foi a primeira pessoa que encontrou. Mas, ele gostaria mesmo era de dividir com o Rubinho suas apreensões. - Que é rapaz! Desembucha logo! Falou Chiquinho quando o amigo lhe apareceu pela frente. - Cara eu tive um sonho, tipo um pesadelo. - Vai ver que foi com alguém que eu conheço! - Verdade... Eu sonhei com a menina ali do Mercado, tu sabe de quem eu estou falando, não é mesmo? Ela estava querendo se encontrar comigo na Pousada do Rio... O problema é que ela também tinha marcado um encontro no mesmo lugar com um camarada de fora... Esse sujeito é um que anda pra lá e pra cá, subindo e descendo a estrada, vendendo seguro de vida e parece que tem dinheiro. Tu sabe quem é aposto. Tu acha mesmo que isso é possível? Digo assim, isto é uma coisa certa para ela fazer? Benito está também apreensivo, pois desconfia que seu pai tenha ouvido algumas palavras ditas por ele durante o sonho e ele não sabe, ainda, o que foi. - Ô Benito isso foi só um pesadelo, rapaz. Esquece disso logo e vai falar com a menina. Aí tu tira tudo que é grilo da cabeça. Dizendo isso ele vira-se de costa e diz baixinho: - Ou bota mais... - Ta bom eu acho que vou tentar esquecer este sonho. Que é que tu acha se eu jogar no bicho? - Tem que ser na vaca, pois só um bicho assim é que faz uma desfeita dessas. Passa na banca do Zé da Loló e faz um jogo. Ele sabe como se joga num caso como esse: pesadelo com a mulher por quem se está apaixonado... - Deixa disso rapaz! Eu lá estou apaixonado! Mas eu vou jogar mesmo. Preciso de uma grana boa. Os dois amigos se despediram tendo Benito dado graças a Deus, pois mentir para o amigo não tinha nada, mas o problema era o sonho. O sonho ou pesadelo não era o que ele havia contado para o Chiquinho envolvendo a menina. Era uma coisa muito mais séria que o filho de Seu Constantino queria guardar, pelo menos por agora, só para si. Ele saiu caminhando quase sem rumo e entrou no Mercado onde foi conversar um pouco com o Heraldo em seu quartinho e aproveitar para comprar um chapéu de palha, pois o sol e o calor estavam mesmo de matar. Escolheu um, feito ali perto no Jaguarapi por gente conhecida e que ainda tinha umas carnaubeiras que agora só serviam para fazer coisas com palha; cera não se fazia mais, pois diziam não valer mais nada. Depois de ter conversado fiado com o Heraldo e também com o Zé da Missão ele deu um dedo de prosa com o Chico, avô do Tom e foi aí que soube que o artista estava expondo seus belos quadros na Capital. Antes de ir para casa Benito passa no ponto do Zé da Loló para fazer o jogo recomendado pelo Chiquinho. Ele contou, assim por cima, os dois sonhos que tivera para o Zé que os interpretou e sugeriu uma dupla de grupo com a vaca e o cavalo. Se ele ao menos tivesse sonhado com um número poderia jogar nas milhares. Seria bom esperar? O apontador disse que aproveitasse e jogasse de qualquer jeito; ele lhe ajudaria a fazer o jogo e, certamente, ganharia. Feito o jogo Benito foi logo embora. Quando chegou perto do meio dia já tinha lembrado bem mais do outro sonho da noite passada e que não quisera nem mencionar para o Chiquinho e nem todo para o apontador. Aquele com a menina do Mercado e seu namoro com o vendedor de seguro não tinha importância nenhuma pra ele. Algumas palavras e imagens começaram a ser lembradas logo que ele levantou-se e foi tomar café e encontrou seu pai e este dissera ter ouvido a voz do filho, talvez se debatendo com algum fantasma... Benito sabe agora que o sonho envolvia seu pai, pois palavras como Itália nuova, Duce, fascismo, e algumas mais apareciam na sua lembrança. Eram palavras que ele ouvia em casa, sempre pronunciadas por seu pai, mas que nunca lhe chamaram a atenção, pois as conversas entre os mais velhos, não sendo proibidas, não eram estimuladas. Mas, como deve ser em um sonho verdadeiro, as imagens eram bem mais importantes que as palavras. Ele via claramente a figura gorda do Duce, como as que apareciam em revistas de propaganda, fardado de caqui e preto, cercado de toda sua família, via também imagens do fáscio, da cruz gamada e outras figuras. A lembrança do sonho começava a se cristalizar como se fosse, na realidade um acontecimento real ou no mínimo um filme passando na tela do cinema; ele via também a figura de seu pai vestido em um manto branco, com alguma coisa na cabeça que parecia uma tiara com uma cruz de ouro cravejada de pedras preciosas brilhando a luz do dia. Seu Constantino aparecia montado em um belo cavalo branco e portando um escudo enorme e uma lança com um lábaro no qual estava desenhado um símbolo desconhecido de Benito; certamente um símbolo ligado a Igreja. Já era quase uma hora quando ele resolveu ir para a Padaria Napolitana de seu pai, isto é, talvez da família. Ele tinha certeza que Seu Constantino já tinha dado por sua falta e iria reclamar como sempre fazia quando ele se demorava na rua antes de assumir seu posto de vendedor. O pai não lhe deixava mexer com dinheiro, somente o necessário para passar troco e às vezes quando não estivesse presente. Ele desconfiava que o velho não fizesse as contas direito e tinha medo que qualquer dia os credores começassem a aparecer. Benito não esquecia as conversas que Chiquinho tinha com ele sobre os negócios de seus pais. Ele sabia que Seu Mota emprestava muito dinheiro para Seu Constantino e este tinha dificuldades em pagar. O amigo nunca lhe dissera o que seu pai pensava da situação. Seu Mota achava que Seu Constantino estava prestes a dar um golpe e daí a pouco não pagaria seus débitos no comercio, indo a falência, mas ficando com um bom dinheiro. Agora ele queria contar o sonho para seu pai, mas não tinha coragem, pois ficava lembrando alguns fatos presenciados e outros sabidos na cidade que ligavam seu pai a acontecimentos bem anteriores à sua vida de naturalizado brasileiro. Ele sabia que Seu Constantino guardava muita coisa trazida da Itália, como livros, folhetos, retratos, medalhas. Essas coisas todas ele não mostrava a ninguém, nem mesmo a sua mulher. Ela nunca reclamava, pois parece ter decidido não tomar conhecimento da vida peninsular de seu marido. Outros fatos ele tinha sabido por meio de conversas com Chiquinho, Rubinho, e muitas pessoas que orbitavam pelas bodegas do Mercado. A Fransquinha era também um repositório de fuxicos de toda a espécie; ela sempre tinha uma historinha fresca sobre os patrões e o povo grande e pequeno da cidade. Em uma dessas histórias se conta que Seu Constantino, desde quando havia chegado se reunia com alguns conhecidos que chegavam de Camocim e Sobral; não se sabe o que eles conversavam ou discutiam. Coisa boa não era, pois o Delegado de Policia chegou uma vez a bater em sua casa a procura do velho. - Benito, vem ca! Ele ouviu seu pai e foi logo atendê-lo. O velho Constantino estava perto do enorme fogão a lenha no quintal. Ele estava sentado no banco embaixo do pé de sapoti e parecia preocupado, mas estava comendo uma das frutas apanhadas há pouco. Logo que o filho chegou disse-lhe: - Eu sei o que você falou durante no sonho e que esta lhe preocupando muito. O Duce foi o homem mais importante da Itália, um verdadeiro herdeiro dos antigos imperadores romanos. Depois que cheguei a este país eu nunca falei sobre minhas inclinações políticas. Somente alguns amigos muito chegados sabem de meus interesses. Não se incomode com isso. Com relação a nossa situação financeira nós vamos resolver tudo. Eu estou rezando muito para São Constantino, patrono de meus antepassados, e espero que ele nos ajude nessa hora difícil para a nossa família. Benito não disse nada, mas pensou e, logo depois, em casa, perguntou ao velho o que significava a frase que estava escrita em letras vermelhas flamejantes, no lábaro que seu pai carregava no sonho, “In hoc signo vinces”. O velho napolitano olha para o filho e diz simplesmente: - Nunca ouvi falar nisso, meu filho.

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