Friday, December 10, 2010

CONTOS DA RIBEIRA - 49


CLARIMUNDA DA RIBEIRA

Ele não frequentava a Igreja, nunca estudou no Seminário e nem mesmo foi coroinha, só ia a missas de sétimo dia de velhos conhecidos. Não acreditava em muitas coisas e carregava consigo um grave defeito. Era um eterno apaixonado, muito embora os objetos de suas paixões não tomassem conhecimento delas. Rogério levava assim sua vida que, por sinal, já estava dando sinais de grande desgaste. Aqui e ali ele tinha dúvidas, ou melhor, alguma garota lhe deixava dúvidas se ele ainda não poderia ter sucesso com esses seres estranhos. (...)

Foi num dia de domingo na Beira-rio que, fazendo sua caminhada diária, cruzou com ela. Ainda de longe ele havia notado seu caminhar meio desengonçado, rebolativo e quando cruzaram caminho ela olhou bem dentro de seus olhos; Rogério logo sentiu um incômodo, como se tivesse sido ferroado por uma abelha. A partir dessa ferroada, Clarimunda, pois era esse o nome da garota, não lhe deu mais trégua. Além dos encontros, ou melhor, dos cruzamentos diários na Beira-rio, ela encontrava pretextos vários para ir até a sua bodega para um dedo de prosa e adoração.

Esse ataque continuou por muito tempo até que ele foi completamente enredado na teia, não de abelhas que não as têm, mas numa teia de aranha negra, bem tecida e forte. Por mais que ela lhe satisfizesse em seus mínimos desejos Rogério não conseguia compreender qual o motivo desta tão grande atração que Clarimunda sentia por ele, é lógico, além de seu charme especial. Apesar de não entender as razões da jovem, sendo ela bem mais nova do que ele, Rogério passou a admitir que ela fosse preparar algumas frugais refeições, lavar algumas peças de roupa em sua casa, visto ser um rapaz solteiro e comer fora, costumeiramente.

A amizade entre os dois já ia a bom caminho e Rogério já se achava quase que enfeitiçado pela jovem; aliás, todos os seus amigos e parentes achavam que alguma coisa de sério iria acontecer com os dois. Foi então que Rogério passou a notar um comportamento muito estranho de Clarimunda. Ele notou que todas as sextas-feiras ela só aparecia em sua casa depois das 10 horas da noite. Por mais que ele procurasse a razão para isso não encontrava nada que justificasse o que acontecia. Nessas ocasiões ela levava sempre um potinho com uma ceia especial, geralmente um doce, que preparava para seu namorado.

Rogério queria tirar a limpo qual a razão do comportamento de sua nova amiga. Não que ele se importasse muito, mas é que gostava de tudo muito certinho em sua vida e isso estava-lhe atrapalhando os pensamentos. Ele resolveu investigar o fato começando pela vizinhança de Clarimunda. A menina tinha vindo do interior, de um lugarejo próximo ao Ibuassu; ninguém sabia sobre seus pais. Ela podia até ser uma invenção ou alucinação de Rogério. De qualquer forma ele perguntou a muita gente, com muito vagar a fim de não chamar atenção. Ninguém sabia de coisa alguma, mas todos diziam que ela só falava em seu namorado, que era bonito e delicado e muito dedicado.

Essa procura levou Rogério a descobrir que a casinha em que sua namorada morava dava os fundos para o Cemitério de Santa Eulália. O moço deu um jeito de observar Clarimunda a partir do interior do cemitério. Numa sexta-feira ele foi bem cedo até o cemitério e, dando um agrado para o zelador, conseguiu sua permissão para entrar no campo santo. Ao entrar, escondendo-se por trás de túmulos antigos, ficou a espreita, mirando a parte de trás da casinha de sua namorada. Já estava escuro quando ele foi recompensado e viu a jovem sair pela porta dos fundos de sua casa e entrar para o cemitério através de uma abertura muito estreita que ele só conseguiu ver com muito esforço e porque notou que ela chegava perto da parede do lado externo e logo aparecia do lado interno, assim bem rapidinho. Rogério viu que ela se dirigia para uma parte do cemitério onde estavam sepultadas pessoas importantes, dos tempos antigos da cidade. Ele também observou que Clarimunda levava alguma coisa em suas mãos e, espichando bem o pescoço ele viu que era uma pequena bolsa escura.

Rogério ficou na dúvida se acompanhava Clarimunda em seu périplo e suas ações no cemitério ou se passava através da abertura na parede para sua casa e a examinava. Ele preferiu acompanhá-la com cuidado e ver se descobria o que sua namoradinha fazia nesse lugar não de todo adequado para ela, pensava ele. Rogério viu quando ela chegou a um túmulo antigo e meio que desabando e, ajoelhada, começou a cavar a superfície usando um objeto, talvez uma pazinha de jardim, que retirara da pequena bolsa escura. Não demorou muito e ele ouviu um som de metal sobre madeira e acreditou que a jovem havia atingido alguma estrutura abaixo da superfície. Por sua atitude parecia que ela já havia mexido anteriormente no caixão, pois certamente, era um caixão de que se tratava. Com o coração batendo apressadamente ele não arredou o pé e viu que Clarimunda retirava um pequeno osso enterrado no local e o colocava, juntamente com a pá, na bolsa escura que trazia.

A moça se dirige então, de volta à abertura na parede do cemitério e a atravessa sem dificuldade alguma chegando à sua casa. Rogério deixa passar alguns minutos e vai até o local e tenta passar por essa abertura, mas não consegue, pois ela é estreita demais. Ele não sabe como Clarimunda conseguiu atravessá-la, mas resolve pular o muro e ficar de espreita na porta da cozinha que se encontrava semiaberta.

O que ele viu causou-lhe um grande espanto. Clarimunda pegou o pequeno osso que aparentava estar muito frágil e o reduziu a pó utilizando um almofariz de pedra e um pistilo. Certamente a quantidade de osso que ela trouxera foi suficiente para a preparação que faria, pois Clarimunda adicionou um líquido azulado guardado em uma pequena garrafa de vidro que estava ao lado dos outros ingredientes e apetrechos. Após ter misturado bem o pó de osso com o líquido ela retira um colher de sopa bem cheia com a mistura e adiciona à pequena panela onde alguma coisa estava fervendo sobre o fogão. Após ter mexido bem os ingredientes ela apagou o fogo e verteu a mistura em um potinho tudo por tudo igual aos que ela lhe levava em outras sextas-feiras. Logo, logo Rogério sai apressado e, sem dar boas noites para nenhum dos vizinhos sentados em frente às suas casas vai para a sua.

Sem ter que esperar muito ele pressente a chegada de Clarimunda que, por esse tempo já tem a chave de sua casa. Ela entra e logo lhe diz:

- Boa noite, meu bem! Você está bem?
- Tudo bem...
- Eu trouxe um potinho de doce de caju em massa para você. Acabo de tirar do fogão. Acho que está delicioso. Você quer experimentar logo?

Sem esperar por seu consentimento Clarimunda põe uma boa quantidade de doce em um pratinho e da para Rogério. Ele come o doce sentindo uns pedacinhos que lhe parecem ser fragmentos de castanha de caju.


Texto: Kézia Sena (http://cartaskelus.blogspot.com/2010/07/bastou-um-olhar.html)
Foto: Mariana Neto
Modelo: Camilla Savi


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