Saturday, April 02, 2011

ESCRITOS DA RIBEIRA


DOIS AMIGOS

1

Na entrada da garagem Daniel ouviu a voz do patrão, vinda lá de cima. Ele estava lavando o carro preto, sempre usado pelo Carinha para viagens curtas. Ele já imaginava para o que seu patrão o queria. Certamente pretendia ir até Itapiranga tomar um uísque com o Velho, seu amigo de sempre. (...)


A casa do homem mais poderoso da região era imensa e fora recentemente construída em uma rua que, nem nome nem pavimentação, tinha. A mansão modernosa tinha dois pavimentos com os aposentos do casal na parte de cima e o da filha embaixo. No lugar de um jardim, como na maior parte das casas da região havia uma imensa piscina onde aos domingos reuniam-se os amigos do dono quando comiam churrasco de picanha argentina e tomavam uísque, sempre do melhor. O Carinha, pois era assim que ele próprio gostava que o chamassem, era um dos chefes políticos da cidade. Ele mandava e desmandava em Imbotirama já fazia pra mais de trinta anos. A cada eleição seu candidato ganhava a Prefeitura e seus apaniguados continuavam a dominar as repartições municipais. Ele nunca se candidatava a nada. Sempre que tinha um problema de negócios ou que envolvesse alguma de suas amantes ele gostava de se aconselhar com o Velho.

Quando Daniel respondeu que o carro estava pronto para a viagem o Carinha chegou, vestido de bermudão, camisa de malha vermelha – sem nenhuma conotação partidária, que ele não era tolo - carregando um litro de uísque Black and White, pois sabe que o Velho só toma Johnnie Walker e ele já está enjoado dessa preferência do amigo. Leva um uísque de marca diferente e de sabor especial para ver se o amigo o aprova.

A cidade dominada por ele, Imbotirama, ficava à beira mar e era conhecida por seus extensos coqueirais e cajueirais. A produção de coco era dominada por alguns poucos e tradicionais membros de famílias descendentes dos índios que antigamente habitavam as praias da região. Muitos dessas famílias eram também proprietárias dos mais extensos cajueirais do Estado. A cidade era conhecida por essas características além de uma importante atividade pesqueira; pescava-se muito peixe e a lagosta e o camarão eram pescados em águas do Maranhão, mas processados em fábricas nas redondezas. Todo esse pescado era exportado por indústrias pertencentes a pessoas das mesmas famílias.

2

Carinha se dava muito bem com Daniel e gostava de conversar com ele durante as viagens que faziam; por mais curtas que elas fossem eles encontravam sempre um assunto interessante para falar. O jovem empregado era um verdadeiro factótum do patrão e causava ciúmes ao Velho, pois ele era o queridinho em sua casa uma vez que havia casado com Rita, uma das filhas do grande fazendeiro. Muitas vezes Daniel fazia pequenos favores para o sogro no que era muito agradecido. Esses pequenos favores se assemelhavam a alguns que ele fazia para seu patrão.

Nesse fim de tarde, quando os dois se dirigiam a Itapiranga, o jovem motorista conta a Carinha que vira Edvânia pela manhã descendo de um dos carros do Velho e dirigindo-se para a Imperatriz, a grande loja de tecidos da cidade. Ela certamente iria fazer compras na cidade ontem mesmo e não na capital como era seu costume. O patrão se assanha, pois a moça é uma de suas paixões e estava sendo assediada nada mais nada menos por seu grande amigo. Carinha ficava chateado quando sabia dessas histórias, mesmo porque o Velho tinha pelo menos duas amantes de longa data, com filhos e tudo, das quais todo o mundo sabia inclusive sua mulher e filhos. Ninguém dizia coisa alguma. Agora ele queria se meter com a Edvânia, seu novo xodó. O patrão pediu então a Daniel que o deixasse na casa da jovem. O rapaz observou que ele havia marcado com o Velho para beberem em sua casa. Carinha observa que primeiro a devoção, depois a obrigação e que o peão deve ficar com o celular ligado para quando ele resolvesse voltar para casa ou visitar o amigo.

Daniel aproveita a folga e vai até a casa do sogro fazer uma média com Dona Marocas, sua sogra, a mãe de Rita. Ele logo encontra Demóstenes, um caboclo franzino, mas trabalhador. Um cara casado, mas com uma caradura de primeira, comia todas as menininhas da redondeza, fossem elas do soçaite ou empregadinhas, principalmente as de seu pai. Estes dois não se gostavam e até mesmo se hostilizavam. Quem perdia sempre era Daniel, pois o sogro, naturalmente, sempre dava razão ao filho.

3

O Velho – ainda não conhecido por tal - e Dona Marocas eram pobres quando se conheceram e ela ficou grávida de Isabel, isto é, no começo de sua vida em comum. Após o nascimento da filha eles perceberam a necessidade de trabalhar duro para sustentarem uma família que, além da filha e dos outros que certamente viriam, era composta dos pais dele e dela que, velhos dependiam dos dois. Como morassem com os pais de Dona Marocas em uma casinha de palha de frente para o mar, na praia do Toco, e houvesse um pequeno coqueiral nos fundos o Velho começou a apanhar, ou melhor, subir nos coqueiros e colher os frutos para vender. Em pouco tempo ele se apossou de outras pequenas plantações contíguas e em cinco anos ele tinha agregado ao quintal dos sogros uma enorme extensão de terras. Para falar a verdade as terras onde se achavam os coqueiros haviam pertencido aos índios desde os tempos dos aldeamentos. Os remanescentes índios nunca reclamaram de nada e, quando o Velho conheceu o Carinha tratou de conseguir a posse para si, por meio de usucapião, de uma extensão de terras que daria para uma futura expansão de sua plantação de coco.

Apesar de nunca ter estudado e ser quase analfabeto o Velho era um aço, pois sabia contar, principalmente somar e multiplicar. Assinava seu nome, era eleitor e tinha conta em banco, gerenciada pelo Leandro, o segundo dos filhos. Este também não havia estudado – homem precisa é trabalhar, dizia seu pai -, mas era muito esperto, mais do que seu irmão Demóstenes. Quando foi preciso modernizar a plantação de cocos foi Leandro quem se encarregou, com a ajuda de Carinha, de contratar um agrônomo especializado para a tarefa. Em poucos anos eles estavam exportando frutos in natura para compradores do Rio de Janeiro e São Paulo. A maior parte da produção passou logo a ser processada em uma fábrica construída nos arredores da cidade e onde água de coco era engarrafada e se produzia copra. A fibra era também processada e vendida para indústrias de estofamento. A produção de água era feita em um empreendimento que tinha a participação de uma grande firma de refrigerantes instalada na capital, cujo principal sócio era um imigrante turco.

O outro grande negócio do Velho eram os cajus. Ele conseguiu adquirir enormes glebas já plantadas, mas improdutivas. Com o auxílio do agrônomo, inicialmente contratado para a implantação dos coqueirais, ele investiu pesado em plantas enxertadas de tal sorte que dentro de poucos anos ele estava colhendo castanha e fabricando suco, ambos de grande aceitação comercial.

4

Poucas pessoas conheciam o Velho por seu verdadeiro nome. Zé Bezerra havia nascido no distrito de Quatralha que formava o núcleo mais antigo de Itapiranga. Antes de conhecer sua futura esposa ele podia ser encontrado em um dos inúmeros barcos que diariamente saiam para alto mar para a pesca de camurupim, principalmente. Aos poucos ele foi se tornando independente e, com o casamento e a proximidade dos pais de sua mulher ele deixou a pesca para dedicar-se à incipiente indústria local de coco. Os filhos foram chegando ao mesmo tempo em que suas posses e sua riqueza. Isabel, sua filha mais velha e afilhada de Carinha, começou um namoro com o agrônomo que havia sistematizado suas plantações de coco e seus cajueirais e logo casaram. O Velho, no entanto, não dava muita atenção ao genro em assuntos particulares. Ele gostava do moço como profissional e pai de seus netos. E era só. Já a filha era uma funcionária muito eficiente que trabalhava nos escritórios da firma desde o início das atividades. Ela tinha até aprendido a mexer com os computadores que guardavam os segredos da firma.

Isabel e o irmão Leandro, ainda solteiro, mas namorador que só ele, gerenciavam o escritório central. Ele tinha as maiores responsabilidades sobre as operações da empresa do Velho. Era ele o preferido do amigo Carinha que vivia insinuando pretender sua adesão à boa causa. Isto é, aos seus negócios políticos. O rapaz ainda não tinha decidido mesmo porque o Velho não parecia apreciar sua entrada na política. Quem sabe, um pouco mais adiante. Talvez quando ele deixasse de se interessar em manter seus músculos como os de um perfeito marombeiro. Já Demóstenes, o filho do meio era franzino já havia casado e com uma moça bonita da capital, a Miriam, descendente de gente importante. Muita gente na cidade estava esperando que a jovem, muito alegre, logo botasse um belo par de chifres no filho do Velho. O amigo Carinha não se cansava de dizer que o Demóstenes logo estaria desempenhando um papel importante na política da região, talvez antes de Leandro, o seu preferido. Havia lugar para ambos e para muito mais gente.

Luiza, a filha mais nova parecia ser um problema para a família. O Velho gostava da menina, mas a tratava com muita rispidez. De qualquer modo ele estava preparando um candidato para se casar com ela, dizendo ele que a menina teria de seguir o curso natural das coisas que era o de produzir netos para o seu, dele, deleite.

5

Carinha era um político experiente e como tal fazia força para não misturar assuntos particulares com os políticos. Entre esses estavam os que diziam respeito à sua atividade junto aos políticos das áreas estadual e federal na busca de recursos para a região que ele tão bem representava como chefe político tradicional. Os interesses da região onde se encravavam os municípios de Imbotirama e Itapiranga eram sagrados para ele. É verdade que ele havia elegido quase toda a bancada da Câmara Municipal das duas cidades – a maioria nos legislativos era segura, ele podia mandar apresentar qualquer projeto que seria aprovado com a maior facilidade. Em Ibotirama comandava a bancada sua amiga Carmem Lúcia, eleita pelo PSI, partido suposto ser de oposição a ele. Era ela quem apresentava os projetos relativos a obras de infra-estrutura, como chafarizes, esgoto na parte central e construção de escolas em todo o município. Já Miguelzim, antigo retirante vindo da Zona Norte era vereador pelo partido dele e tratava dos interesses do chefe na Câmara de Itapiranga. Os dois, ou melhor, os três, tinham que estar sempre afinados e para isso havia uma super secretaria secreta que organizava o recebimento de verbas federais e estaduais e fazia os repasses adequados. O Deputado Federal Waldir era quem enviava as verbas federais e o Deputado Chiquinho as estaduais. Carinha, pessoalmente, tinha o controle de tudo. Era para fazer parte deste grupo seleto que ele queria o concurso de um dos filhos do Velho, de preferência o Leandro. Como todos tinham inveja de todo o mundo Demóstenes ficava ressentido pelo interesse de Carinha pelo irmão e Daniel tinha ciúmes dos dois, mas conseguia encobrir. Sua mulher conseguia administrar essa diferença e tinha esperança de conseguir que seu pai desse ao marido uma posição condizente com a de genro apreciado.

Quando o Velho precisou fazer uma ampliação na unidade de processamento de copra em sua fábrica de Itapiranga foi ao Carinha que ele recorreu. Logo foram elaborados projetos para a construção de casas populares, quadras esportivas, aquisição de veículos especiais para a coleta de lixo e mais alguns outros itens e apresentados quase que simultaneamente nas duas Câmaras. O montante dava para fazer tudo isso e, sem muito alarde, sobrava para um desvio civilizado para reforçar o caixa do Velho a fim de ele poder levar adiante o projeto de ampliação que tanto desejava. O Velho assinou promissórias no valor total recebido que ficaram como garantia para o Carinha. Não que isso fosse necessário, mas era mais ou menos nesses moldes que a amizade dos dois, político e empresário, funcionava.

6

Assuntos ou temas que levavam os dois velhos amigos a quase chegarem às vias de fato se referiam às suas conquistas extra maritais. Quase todos os domingos eles bebiam no deck da piscina da casa de um ou de outro, comendo churrasco da melhor qualidade. Como já estavam acostumados nunca ficavam embriagados como todos aqueles que se atreviam a acompanhá-los. Quando estes começavam a se tornar inconvenientes, interferindo na conversa dos dois eram gentilmente levados, sempre pelo Daniel, para uma mesa mais afastada, mas podia ser por Isabel ou por outro dos filhos. Todos sabiam que ninguém devia se intrometer nos assuntos privados dos dois. Assim o domingo passava e ao chegar à noite aquele que tivesse de viajar até sua cidade tomava uma garrafa de uísque e ia terminar a farra na casa de uma das preferidas do momento.

Todos conheciam e gostavam de Dona Marocas, mas não interferiam em seu relacionamento com o marido. Mas ela era esperta demais para não saber dos casos do Velho. Entretanto, nada dizia, pois era totalmente dependente dele. Ela tinha qualidades que cativavam todos, principalmente suas prendas na cozinha. Era uma exímia cozinheira especializada nos pratos regionais entre eles as peixadas e as caranguejadas. Uma feijoada estava também na lista de suas especialidades. Agora ela se excedia nos doces e compotas de caju, coco, laranja e muitas outras frutas. E, ainda por cima fazia licores de frutas muito apreciados. Nas tardes de domingo na casa do casal em Itapiranga a peixada era o prato preferido depois do churrasco preparado pelo Daniel. Ao contrário de Dona Marocas, a esposa do Carinha nunca era vista nestas reuniões e estranho nunca era também vista quando as reuniões dos amigos eram feitas em sua casa. Ela nunca saia para receber os convidados de seu marido deixando isso a cargo de Elvira sua filha adotiva, pois o casal nunca tivera filhos próprios. Entretanto poucos acreditavam que ela não soubesse da vida amorosa de seu esposo.

Os dois amigos competiam por algumas das garotas das duas cidades, mas isso nunca chegava a perturbar sua amizade e muito menos seus negócios. Eles tinham, aparentemente, um código de honra pelo qual se pautavam e quando um deles cruzava os limites o outro logo reclamava e os dois tentavam chegar a um acordo. Esses podiam chegar a dezenas de milhares de reais, certamente destinados a calar a boca de uma dama. O problema agora, se é que se pode chamar de problema a situação, era o interesse desmesurado do Velho por Edvânia a atual preferida de Carinha a quem ele dedicava boa parte de seu tempo e pensamentos disponíveis.

7

Edvânia era uma jovem vinda do Sertão, tinha estatura média, era morena clara, de olhos castanhos, cabelos lisos, quadris largos, busto pequeno, mas ocasionalmente manipulado por artefatos de uso comum, de borracha. Ela tinha vindo com a mãe fazia poucos anos de um lugar inóspito e pobre. Como diziam, tinham vindo “afuturar a vida” na praia, nas novas indústrias que estavam surgindo. Edvânia conseguiu terminar o segundo grau na Escola Pública, mas emprego ainda não tinha conseguido apesar das promessas. A moça gostava de se enfeitar e ir a festas com amigas da rua e isso fazia com que fosse notada pelos rapazes da cidade. Foi com um deles, que lhe prometeu casamento, que ela foi “desencaminhada”, como diziam sua mãe e as vizinhas. Após isso ela namorou muitos rapazes, inclusive gente das altas rodas e então conheceu o Carinha e seus amigos entre eles o Velho. Ela respeitava os dois e se sentia livre para brincar com ambos sem se comprometer com nenhum deles. Carinha ajudou-a a mudar-se para uma casa melhor, mais bem localizada e com algum conforto que ela e sua mãe não tinham na casinha da Rua da Praia um lugar infestado de viciados de toda espécie. Era na casa nova que o Daniel apanhava a moça para levá-la aos encontros com seu patrão. Era aí também que o próprio Velho vinha, ele mesmo, apanhá-la. Carinha achava que o Velho não tinha o direito de dar em cima de sua conquista, mas sabia que tinha de agir logo para que a moça não se engraçasse de vez do amigo e ele perdesse sua companhia. Carinha empregou-a na Prefeitura de Imbotirama, precisamente no gabinete do Prefeito no qual ela não precisava dar expediente indo somente quando fosse solicitada. Sem fazer quase nada durante os dias ela se dedicava às compras, ora gastando o dinheiro de seu principal protetor, ora do principal amigo dele. Quando Carinha notou que a moça estava se envolvendo demais com o rival decidiu ter uma conversa com o amigo. O encontro deu-se depois de um churrasco na casa do Velho: ambos concordaram em se encontrar no começo da noite em casa de um amigo de Carinha e funcionário da Câmara Municipal de Imbotirama. O bom uísque que os dois tomavam em casa do Velho continuou a pavimentar os altos e baixos da discussão que, diga-se de passagem, não foi uma discussão que provocasse atrito. Carinha queixou-se ao amigo de que ele estaria exagerando, pois estava sabendo, segundo informações e mesmo por ter visto ele próprio que o amigo havia saído com Edvânia, pelo menos umas três vezes. Ele não gostava disso nem um pouco e achava um exagero o amigo já ter duas amantes e ainda ficar querendo caso com a sua atual preferida. O Velho foi receptivo à reclamação amorosa do amigo e prometeu, muito a contragosto, não mais procurar a menina. O Velho concordou também dar participação no novo empreendimento que estava planejando no distrito de Solitude. Mas, ficou muito triste com esses acertos, pois tinha certeza que seus poderes de sedução fariam com que a moça fosse incorporada ao seu círculo de amigas permanentes.




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