Saturday, January 01, 2011

CONTOS NOVOS DA RIBEIRA


O DESAPARECIMENTO DE TROFIM VASEC

O que se passava na Europa era motivo de muita preocupação para Trofim Vasec e sua família. O velho eslavo, depois de ter ficado rico, e ter tido um filho com a herdeira do coronel mais importante da cidade fincou raízes na Ribeira. No entanto, ele sentia saudades da agitação sempre reinante no Velho Continente, onde imperadores e príncipes e presidentes e déspotas em geral eram instalados e depostos do poder com uma frequência que só se via nesta nossa província. Ele resolveu fazer uma viagem à Europa para visitar paises que não conhecia e rever outros onde havia passado parte de sua mocidade errante. (...)

O eslavo aconselhou-se com o seu amigo e consogro Coronel Totonho, homem bem vivido e acostumado a essas viagens. Após muitas conversas e consultas a almanaques e mapas ele preparou um roteiro que incluía paises como a Moldavia, Molvânia, Bulgária, Eslovênia, Rússia e, certamente a Alemanha, França e Itália. Trofim tinha tomado ojeriza pela Inglaterra: não apreciava a pompa ostentada pela família real e por isso havia riscado uma visita a Londres que muito satisfaria seu filho Juca, um apreciador do jeito esnobe de viver dos ingleses. De qualquer maneira Juca acompanharia seus pais e certamente ao lado de sua jovem esposa.

O filho de Trofim era muito namorador, além de gostar de jogar baralho e também de cavalos. Ele possuía um belo exemplar da raça árabe que mantinha no haras de seu amigo Alfredinho, sempre presente nas rodas sociais da capital. Este era sócio no haras de um dos filhos do professor Heraldo Santos famoso por suas diatribes contra o Comendador e seu governo. Até diziam que o Capitão Castro, Subcomandante da Polícia da capital, tinha-o obrigado engolir um jornal onde publicara artigo contra seu chefe e contra ele. Ninguém conseguiu jamais provar o fato, isto é, que o professor Santos havia comido o jornal.

Os dois jovens amigos faziam um bom par, pois gostando de jogar pôquer e de corridas de cavalos eram muito apreciados na sociedade e por isso estavam sempre em evidência nos jornais. Viviam de festas e eram mesmo muito namoradores. Meninas bem jovens os adoravam. Eles as levavam ao haras para passeios a cavalo e as ensinavam a andar de bicicleta, uma nova moda na cidade. Todos iam às festas e partidas no Clube Iracema e brincavam os carnavais sempre em um mesmo grupo.

Alguns meses antes de Trofim ter feito seus planos para uma verdadeira viagem sentimental correu o boato na cidade implicando o jovem Juca em um namoro escandaloso com uma mocinha da sociedade. Ela chamava-se Edilse e era a única filha do temido Capitão Castro um homem altamente atrabiliário. Todos sabiam que, apesar de ser um jovem advogado, Juca era um rabo-de-burro, vivendo sempre a procura de um rabo-de-saia.

Quando Juca começou a aparecer em público com a filha do Capitão Castro, na Praça da Lagoinha, este logo descobriu a marmota e chamou o moço às falas. Após algumas reprimendas e vendo que os dois não se desgrudavam o militar concordou, em termos, com o namoro. Se ele tivesse demorado mais uns dois meses teria tido motivos bem evidentes do passo em falso dado por sua filha, pois, logo, logo a menina apareceu com uma barriguinha que crescia a cada dia. Posta em confissão ela admitiu estar grávida de alguns meses e o pai era mesmo o gostosão Juca Vasec, agora seu namorado por consentimento do pai brabo.

O capitão mandou de imediato fazer os preparativos para o casamento, pois seria impensável que uma filha sua, Capitão Castro, pudesse ter um filho sem ser casada.
Apesar da fama de durão o Capitão tinha de se curvar a certas exigências da vida e como era um homem sem muitos recursos vivia de “achaques” aos homens importantes da capital. Um destes era o próprio Coronel que só não lhe cobrava o que já lhe emprestara devido ao pavor que o Capitão lhe incutia dado o conhecimento de suas ligações com a Casa Bordani, respeitada por seus negócios de importação e exportação.

O casamento realizou-se na Igreja da Praia Grande que servia a mais alta sociedade da capital. O celebrante foi um padre italiano recém chegado e que seria famoso daí a alguns anos por seu envolvimento em histórias muito mal contadas. Mas, até ai nada de mais. Foram tantos os convidados que a igreja ficou superlotada. Eram convidados de honra o Comendador Presidente da Província e todos os seus secretários; membros do alto comércio e das finanças e representantes de potências estrangeiras. Havia alguns convidados amigos da Ribeira. A recepção foi na chácara do Coronel Salgueiro, de longa data sócio do Coronel Totonho que era quem bancava toda a festança.

O jovem casal, pelo fato de Juca ser neto desse coronel passou a gozar de muito prestígio e ser convidado para tudo que era de festa na cidade e, principalmente em Palácio, dada a velha amizade entre o Comendador e seu avô. Isso até a jovem esposa ter sua barriga bem aumentada e ficar evidente que não poderia viajar para a Europa com uma criança recém nascida. O jeito que se deu foi adiar a viagem por alguns meses até que a criança estivesse com o pescoço duro. O bom dessa história do neto de Trofim é que ele nasceu em Palácio, pois o Comendador exigiu que a filha do Capitão Castro, nora do eslavo e ainda por cima esposa do neto de seu amigo Coronel Totonho, tivesse as melhores condições para um parto perfeito. Isto só poderia suceder se a criança nascesse em Palácio. O que é certo é que o menino nasceu como devia: um rapaz forte e bonito. Ele tinha traços eslavos, mas lembrava muito sua ascendência portuguesa e nativa. Daí a alguns meses estava pronto para viajar com sua família para a Europa.

A viagem foi marcada para o mês de abril e todos os preparativos foram feitos para que tudo desse certo. Nosso Trofim alugou um andar inteiro no “Hotel de la Paix”, no Boulevard Saint Étienne, em Paris, onde a comitiva manteria seu ponto de apoio para as viagens pelo continente. Um dos problemas sérios que tiveram de ser resolvidos prendeu-se ao fato que Edilse, a jovem mãe, não era uma boa produtora de leite e em conseqüência do que seu filho era alimentado por amas e muitas vezes com leite de cabras. Agravando a situação e pela premência de tempo não foi possível levar uma ama de leite na viagem. Nem Rosa nem Mundinha, tradicionais amas de leite da Ribeira, que bem poderiam sanar esse problema, estavam em período de amamentação, pois seus novos partos só se dariam daí a três ou quatro meses. Após muita discussão, Trofim e sua esposa, aconselhados por seus consogros, resolveram levar na viagem uma cabra recém parida com a finalidade exclusiva de prover leite para seu neto. A cabra, um animal forte, de boa raça, foi comprada ao Zé Manoel da Redonda e trazida para a capital. Os filhos do dono tinham posto um nome na cabra que foi logo adotado pela família de Trofim: “Bonita”. Ela ficou em Palácio para ir se acostumando com a programação de ordenha que era feita pelo próprio Trofim, homem acostumado a esse mister, pois vinha das lonjuras da Europa pastoril e era mestre nessa arte em sua fazenda no Tanque do Meio. Ele talvez estivesse querendo lembrar de seus tempos de errante pelas lonjuras da Molvânia, Bulgária e Eslovênia antes de visitar novamente esses países.

Chegado o dia do embarque toda a família Vasec, acompanhada por amigos da Ribeira e da Capital, estavam na hora aprazada, na Ponte metálica. A travessia até o navio, o “Maranhão”, foi feita sem nenhum incidente e todos ficaram alojados em três camarotes da primeira classe. “Bonita” foi alojada em uma baia especial no porão provida de suficiente ração para a produção do precioso liquido que iria alimentar o neto de Trofim por toda a viagem. Pela programação da “Compagnie de Bateaux du Brésil” a viagem até o Havre demoraria cerca de 30 dias e, se o tempo fosse bom a família chegaria a Paris no início do verão.

Tudo se passava como planejado, sem surpresas e todos da comitiva estavam alegres e satisfeitos. O neto de Trofim estava bem, pelo menos no que diz respeito ao aproveitamento do leite que a cabra embarcada produzia. O velho eslavo havia estabelecido uma rotina de todos os dias, lá pelas cinco horas da manhã, descer até o porão onde ficava a baia exclusiva para ordenhar a cabra que nunca reclamava, mas já dava sinais de exaustão de sua produção láctea. Trofim preocupava-se com a possibilidade de o animal deixar de produzir e assim prejudicar a alimentação de seu neto. Ele imaginou que se desse à cabra alguma alegria, ou melhor, alguma coisa que ele próprio achasse que seria alegre para ela, o animal continuaria a dar seu precioso leite até o navio chegar ao Havre. Foi assim que ele e a cabra passaram a circular pelo convés do “Maranhão” todos os dias depois da ordenha que se processava, como dito, às cinco horas da manhã. “Bonita” ia amarrada a uma correia de couro presa ao pulso de Trofim, pois certamente ela não poderia andar sozinha sobre o convés.

Esses passeios tornaram-se comuns e todos os passageiros cumprimentavam o velho eslavo e sua dedicação ao animal e, logicamente, ao seu neto. Todos sabiam que “Bonita” havia sido embarcada com a missão única e exclusiva de produzir leite para a criança. A cabra já estava acostumada com os caminhos que tinha de seguir entre as cadeiras de descanso para os passageiros e os cordames que lhes dificultavam a passagem. Tudo corria bem até que certa manhã o animal assustou-se, aparentemente, com a passagem de um enorme vapor que apitou no exato instante em que cruzava com o “Maranhão” já perto do congestionado porto francês. A cabra, lembrando seus ancestrais, deu um pinote e soltando-se da mão de Trofim continua com seu balé de saltos por entre os passageiros já a essa hora tomando banho de sol no convés. O velho eslavo correu-lhe atrás, mas o jovem animal não podia ser alcançado de maneira alguma. Em determinado momento “Bonita” encarou a balaustrada do navio e, pensando talvez estivesse em frente a um muro lá na fazenda de seu antigo patrão pulou para o mar gelado. Trofim não teve dúvidas pulou atrás do animal. Esta foi a última vez que passageiros e tripulantes que presenciavam a cena viram os dois.


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