
Jorge lembrava-se bem de quando o tal “verniz civilizatório” começou a perturbá-lo. Seus pensamentos solitários muitas vezes o levavam a encaminhar sua mente para pequenos acontecimentos em sua infância, que agora se tornavam importantes para a compreensão de porque ele era, na sua visão, tão insosso, desenxabido, caturra, intolerante, encabulado, cheio de vergonha, de pudor. Enfim, um chato de galochas. (...)
A família estava reunida na sala grande, certamente faltava alguém, pois como eram muitos os irmãos, parentes e aderentes, sempre um ou outro estava viajando ou fora de casa simplesmente.
A conversa após o jantar estava animada. Seu pai dominava sobre todos. Raramente alguém interferia nas inúmeras histórias que ele contava. Não é que ele o proibisse com um simples olhar, mas suas histórias eram tantas e engraçadas que todo mundo puxava por ele, como se diz. Ele lembra uma bobagem que o velho contou e da qual todos riram:
O casal estava esperando ser atendido pelo médico psiquiatra, pois ele iria pedir uma receita para um tranquilizante. Havia muitas pessoas aguardando chamada. Aproxima-se deles um jovem, decentemente vestido, portando um guarda-chuva e um jornal dobrado sob o braço. Olha repetidas vezes para a senhora e, finalmente lhe dirige a palavra:
-Eles me receberam muito mal da outra vez que estive aqui. Espero que hoje seja diferente. Ela responde:
-Certamente você vai ser bem recebido.
-A Senhora não acha que os médicos são como os parentes? Eu sou mineiro e tenho parentes lá. Nunca me dão notícias nem eu a eles. Ainda outro dia tive de ir lá para resolver uma pendenga. Procurei meu tio e ele não me deu hospedagem, aliás, nem me recebeu. Mandou dizer que estava ocupado. Eu fiquei muito chateado. Enfim, o que se há de fazer?
-Essa história de família é muitas vezes uma complicação danada.
-É, mas eu tenho um primo lá que é legal comigo. Ele cria abelhas. No outro dia eu fui para a fazenda dele para tirar mel. É no meio dos matos. É muito legal. Ele veste aquele traje branco, põe a máscara, abre a colméia com cuidado e começa a tirar o mel. Todo cuidado é pouco, pois se a gente se mexe as abelhas lhe picam e você pode até morrer. Mas, é muito legal mesmo. A gente fica olhando para a abelha e ela para você, devolvendo seu olhar. Ah! Como é legal.
Então a atendente chama seu nome e ele sai sem se despedir.
Essa era uma das muitas historinhas que Raposo Filho contava para alegrar as reuniões.
Outra história que o velho contava sempre era a do morador de uma terra vizinha a uma das suas próprias e com quem se dava muito bem. Brigavam às vezes, mas isso fazia parte dos negócios. Ao aproximar-se a data de uma eleição o Galdino pergunta a Raposo Filho:
-“Seu Joge” em quem o Senhor vai votar?
-Galdino eu não vou votar e sim tomar um purgante!
-Pois “Seu Joge” eu também quero tomar do mesmo purgante que o Senhor!
Todos continuaram reunidos a conversar com animação. Jorge interrompeu alguém que estava falando sobre tristeza e melancolia. Ele lembra-se que talvez fosse algum poema de um autor francês. Jorge só lembra que ele tentou interpretar o que se dizia, falando que, “isso parece ser uma demonstração de spleen”. Ao terminar a frase todos desabaram a rir.
Em outro serão, após o jantar, Jorge animado, contava alguma passagem do livro que estava lendo e usou a frase: “...ela olhava de solsaio...” Ele mal fechou a boca quando uma gargalhada de todos o assustou. Alguém o corrigiu dizendo que a palavra era soslaio e não “solsaio”. Jorge desejou estar morto neste instante.
Rir dele, o já eterno encabulado, antes dos dez anos. Todos eram sabidos, ele não podia ser! E pelo visto não era mesmo!
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