TRÊS MOMENTOSSANGUE
Em frente a casa havia um mar contido pela calçada, um mar de areia, bem dizendo, areia nem grossa nem fina, com muitos seixos rolados, certamente areia trazida, em alguma época remota, do rio que passava lá embaixo. Essa areia talvez tenha servido para aterrar o riacho que passava em frente. Para saber se isso era verdade, seria preciso cavar, fazer uma pesquisa geológica no local; pode até ser que esta se transformasse em estudo arqueológico se fossem logo encontrados restos de alguma antiga povoação indígena. (...)
No tempo do inverno esse areal era ideal para as brincadeiras deles. Os meninos eram uns três ou quatro e todos mais ou menos aparentados e colegas no Grupo. O Milton, o Clóvis, o Gilberto, o Sileno, o Rubens, aí já são cinco, e de vez em quando aparecia mais um ou outro. No inverno, quando chovia, era em frente, debaixo dos jacarés que eles tomavam banho. Depois da chuva o areal era bom para se jogar bila. Todos queriam fazer os buracos com o calcanhar, parece que sentiam um grande prazer quando giravam o pé para formá-los. Todos traziam suas bilas coloridas, umas grandes, outras pequenas e o jogo começava. As apostas, pois eles jogavam apostando, eram feitas usando cédulas de cigarro como moeda. Havia alguma variedade nas marcas de cigarros vendidas nos bares de tal sorte que se podia fazer um verdadeiro sistema monetário com moedas de diferentes valores, representadas pelas cédulas que nada mais eram que os invólucros de cigarros. Carteiras vazias de Colomy, Continental, BB, eram as menos valiosas enquanto as cédulas de Belmonte, Astória, Hollywood, e as de cigarros americanos como Philip Morris, Lucky Strike, Chesterfield e algumas outras mais correspondiam a dinheiro alto.
Nas férias eles brincavam quase todos os dias, pois não havia essa atrapalhação das aulas do Grupo quando a Dra. Antônia mantinha todos debaixo de uma vigilância muito grande. As mães adoravam, pois não tinham nenhuma preocupação com respeito a mau comportamento. Os problemas, para as mães, surgiam quando chegava o tempo do verão, pois os meninos gostavam de alotar pela cidade inteira, principalmente pelos lados do Rio e isso era considerado perigoso. Quando chegavam as chuvas eles gostavam mesmo era de brincar de bila e logo em frente da casa do Milton.
Nesse dia estavam jogando o Clóvis, o Gilberto, o Sileno e o Milton. Todos jogavam com suas cabiçulinhas novas, compradas na bodega do Seu Vicente, a mais sortida do Mercado. Todos eles tinham também, pelo menos, um cocão que era para dar tecadas nas bilas dos outros. Já estavam pelo meio do jogo e todos já de matança quando o Clóvis diz que o Milton tinha pulado um buraco e que isso não era certo. O Milton se zangou e foi aquela discussão toda, mas os outros não se meteram. O que se sabe é que o Milton esquentou e pegou um cocão azulado e atirou contra o Clóvis. Daí foi aquele grito e o sangue escorreu pela cabeça do menino e começou a pingar na areia. Foi uma gritaria danada. O Milton ficou apavorado e gritou pela Fransquinha que saiu lá de dentro da casa e quando viu aquilo voltou para buscar pó de café para estancar o sangue. Depois de muitos filhos da puta pra lá e pra cá o Clóvis foi embora pra casa. Passou muito tempo até que os dois desafetos infantis conseguissem se falar novamente. Isso só se deu quando já eram adultos.
GENTE GRANDE
Eles cresceram, eram doutores, e todos tinham seu trabalho e criaram suas famílias. Raramente se encontravam, nunca todos ao mesmo tempo, nem em aniversários, talvez somente em missas de sétimo dia. Clóvis formou-se em Administração de empresas, uma nova profissão com diploma acatado pelos jovens empresários que ditavam os novos rumos da economia do Estado. Logo depois de formado ele foi contratado para um alto cargo na holding das empresas do Grupo Ele-Efe comandadas pelo Dr. Eliezer Efendi, advogado de origem turca, um grande ganhador de dinheiro. Após alguns anos nessa posição Clóvis passou a assessorar o Senador Tibúrcio Rodrigues, membro do partido da situação. Com todo esse cabedal Clóvis freqüentava as altas rodas político-empresariais e foi presidente da Associação para o Engrandecimento Empresarial (AEE) o que lhe dava muito prestígio e influência entre os políticos. Só para informar, sua filha mais velha, a Helenita, casou-se com o filho do dono das empresas Ceras Cearenses, outro milionário de sucesso no Estado. Clóvis nunca quis candidatar-se a nenhum cargo eletivo, pois isso, segundo ele, lhe tiraria a espontaneidade no tratamento com seus subordinados, parentes e quejandos. O resultado de tudo era que ele tinha algum poder. Não muito, mas todos acreditavam que seu poder era imenso. Entre esses se encontrava Milton. Os antigos amigos acreditavam que muita gente da Ribeira, daqueles tempos de infância, estava empregada em repartições estaduais graças à interferência e indicações de Clóvis. Pode-se também dizer que ele tinha alguma interferência em muitos outros processos em todas as esferas da administração, mas ele gostava mesmo era de opinar na esfera federal. Ele era simpático aos novos donos do poder em Brasília e frequentemente viajava para a Capital para reuniões em Palácio com os altos escalões federais. Na volta sempre trazia algum bom negócio para os amigos e, porque não dizê-lo, para si próprio.
Milton também havia se formado. Ele tinha conseguido, com certa dificuldade, um diploma em Odontologia, uma profissão sem nenhum charme como todos acreditavam, mas que dava oportunidades para alguém ter uma bela atuação. A princípio ele exerceu sua profissão no interior, mais precisamente em Tanque, agradável cidade do litoral norte. Aí ele adquiriu prática e amealhou uma pequena fortuna. Transferiu-se para a Capital e em breve, fez concurso para uma cadeira na Escola de Odontologia do Dr. Raimundo Gomes chegando em poucos anos a Professor Doutor Titular. Quando a Escola foi federalizada e perdeu o apoio de muitos profissionais da área Milton ficou quase sem poder fazer suas pesquisas sobre feridas brabas da boca, especialidade a que vinha se dedicando ultimamente. Quando da mudança para a área federal seu grupo era constituído por cinco professores e dez estudantes entre alunos de mestrado e doutorado. Sem auxílio para o trabalho Milton ficou desesperado. Se juntarmos a esses problemas na Faculdade os seus problemas particulares: com a mulher, com seus filhos, pais e tios, compreenderemos porque nosso competente Professor Doutor entrou em um processo de depressão bem profundo. Ele foi atendido pelo Dr. Hermann, famoso médico psiquiatra, em sua clínica onde era instado a deitar-se no chão por cerca de meia hora após o que uma enfermeira jovem lhe passava uma esponja embebida em essências florais do Dr. Bach. Após alguns anos desse tratamento ele ficou parcialmente recuperado. Isso permitiu sua volta ao trabalho, agora dotado de uma agressividade que era coisa nova para seus amigos.
Após alguma reflexão Milton decidiu procurar seu antigo amigo de infância, o Clóvis, na suposição de que ele poderia sugerir-lhe contactos no meio empresarial local onde certamente poderia obter ajuda. Após muita dificuldade ele conseguiu, através de um industrial de suas relações, uma entrevista com Clóvis. Acertado tudo, na hora marcada ele estava lá, na ante-sala do antigo companheiro de brincadeiras na Várzea. Abraços pra cá, abraços pra lá, os dois sentam e passam a rememorar fatos de uma época que talvez fosse melhor não trazer à tona.
Milton expôs a situação em que se encontravam seus trabalhos sobre o câncer bucal e as perspectivas do desenvolvimento de novos medicamentos contra essa doença a partir de estudos de seu grupo. Ele não poupou nas tintas quando descreveu a penúria de seu laboratório e a dificuldade em mantê-lo em atividade na Faculdade de Odontologia. Durante toda sua preleção Clóvis não demonstrou qualquer interesse sobre o assunto que era a paixão de Milton. Ao final de sua exposição, quando ele usou até de fotos coloridas, ele solicitou enfaticamente, ou melhor, pediu a interferência do amigo para encaminhar-lhe a algum industrial que lhe pudesse financiar, pelo menos parte de seu trabalho de pesquisa. Após um longo e nervoso silêncio Clóvis lhe diz que não tem a mínima condição de indicar-lhe alguém que possa fazer isso. Porque ele não procura o Gilberto, um alto funcionário do Governo estadual que, certamente lhe dará ótimos conselhos. Milton fica desconcertado com as palavras de Clóvis e, recolhendo suas tralhas, dá-lhe uma boa noite, pois o sol já tinha se posto e as luzes já estavam acesas lá embaixo.
MEMÓRIA
Alguns anos após ter feito essa visita a Clóvis, em seu espaçoso escritório da Associação para o Engrandecimento Empresarial (AEE), Milton teve notícias do antigo amigo de infância. Ele recebeu pelo Correio uma carta na qual Clóvis reclamava do tratamento dado à sua família em recente livreto publicado por Milton. Clóvis imagina que a pesquisa feita pelo autor do livreto não fora exaustiva e seu pranteado pai não fora citado no estudo. O amigo de infância traz informações sobre sua família, algumas delas, desconhecidas do autor. Que os pais de ambos eram grandes amigos, isso era por demais sabido. Talvez essa proximidade fosse tão grande que passou despercebida para o autor do livreto sendo tomada como pertencendo ao domínio do senso comum. O fato trágico é que ao escrever essa carta, a primeira e última que ele escrevia a Milton, Clóvis foi internado com suspeita de infecção generalizada. Ele ainda sobreviveu por uma semana.
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